São Paulo, segunda-feira, 04 de junho de 2007

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GUILHERME WISNIK

Dentro da baleia


O artista Matthew Barney utiliza navio baleeiro como metáfora do mundo em seu último filme


NO ÚLTIMO Resfest (festival de cultura pop), ocorrido no mês passado em São Paulo, foi possível assistir ao filme "Drawing Restraint 9" (2005), de Matthew Barney, considerado um dos artistas mais importantes da atualidade.
Diferentemente do ciclo "Cremaster" (1994-2002, exibido aqui em 2004), o novo filme não mira a circulação sem fim (e sem fundo) das imagens na sociedade de consumo. Se, ali, o recurso reiterativo ao universo frio e banalizado das imagens pop, somado à pulsão erótica, visa de algum modo reinjetar potência em um mundo desencantado, aqui o "mundo" é o navio baleeiro japonês Nisshin Maru (uterino como se fosse o próprio interior de uma baleia), atravessado por tradições de uma cultura alheia ao nosso repertório. Nele, o Ocidente é recebido como hóspede, na figura das duas personagens centrais: o próprio artista e sua mulher, a cantora Björk, que também compõe a estranha e impactante trilha sonora do filme.
Quase sem diálogo, a narrativa se desenvolve em seqüências paralelas apresentando os meticulosos rituais de recepção dos visitantes, como numa cerimônia de casamento xintoísta (banhos, corte dos pêlos do corpo, vestimentas paramentadas com conchas, ouriços e cornos) e o operoso trabalho da tripulação despejando vaselina sobre uma fôrma metálica montada com guindastes, de modo a realizar uma grande escultura oval seccionada por uma barra: materialização da idéia de impedimento referida no título.
Feito em cadência lenta, mas com cortes bruscos e precisos entre as várias coreografias (de operários, crianças, nadadoras que extraem pérolas das rochas), o filme tem um ritmo alucinante, apoiado na oposição visual de objetos com acabamento limpo e impecável, como leques, dobraduras, embrulhos de presente e pérolas, e materiais ásperos ou viscosos, como cracas, vaselina e âmbar-gris, uma substância excretada pelas baleias e usada na fabricação de perfumes. Simbolicamente, a craca de rocha (que se parece com uma espinha de baleia) é como um fóssil pré-histórico do petróleo, que, por sua vez, é o substituto moderno do óleo de baleia como fonte primária de energia, aludindo não a uma "evolução" linear de uma coisa a outra, mas a um sistema hermético em que tudo se transmuta.
Assim como os dois hóspedes, o espectador se vê envolvido em um ritual de iniciação a um mundo híbrido, o que exige sacrifícios. Depois de longa preparação, homem e mulher se encontram e consumam seu casamento. Sob forte tempestade, a vaselina vasa pelo convés até encher o quarto nupcial nos porões do navio, onde os dois vão cortando os pés e as pernas submersos, e os oferecendo amorosamente ao outro como lascas de sashimi. Mais uma vez, o talho seco na carne revela a banha branca existente atrás: a matéria informe. Ao fim, os operários desformam a escultura no convés, que se desmantela. O sistema, portanto, não fecha, não se "desenha" completamente. Se estamos dentro da baleia, teremos que procurar a luz do dia em alguma outra direção, que, por enquanto, se mantém velada.

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