São Paulo, segunda-feira, 04 de junho de 2007

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NELSON ASCHER

Obstinados e obsessivos


Densidade e compactação são as virtudes da melhor poesia de nosso tempo


SOBRAM ESTUDOS sobre poesia, prosa e sobre o que as diferencia. Há, no entanto, bem menos análises sobre o que distingue o poeta do prosador.
Para complicar a situação, sempre houve eleitos capazes de demonstrar excelência em ambos os ramos. O inglês Thomas Hardy, que começou poeta, consagrou-se romancista e, na velhice, retomou os versos, é um caso ilustrativo. James Joyce, antes de se entregar totalmente a sua trabalhada ficção escreveu, na juventude, alguma poesia. Trajetória semelhante foi a de Blaise Cendrars, poeta na primeira metade da carreira, prosador na segunda. D. H. Lawrence nunca deixou de escrever poesia. Por sorte, tais casos são infreqüentes desde, pelo menos, meados do século 19, quando os papéis se definiram claramente.
Mesmo nos anos precedentes, porém, os estereótipos já se delineavam. Enquanto o prosador ideal, Dickens por exemplo, era um senhor barbudo que alcançara a plenitude do vigor criativo na meia idade ou depois, o poeta típico, quase sempre imberbe, consumira todo seu combustível cedo numa imensa chama e, ou morrera jovem, como Keats e Shelley, ou abandonara a poesia antes dos 40, como Wordsworth, ou passara a segunda metade da vida entrevado, como Hoelderlin.
A lição do Romantismo, portanto, era a de que, se a prosa, que requeria a lenta sedimentação da experiência prévia, estava reservada para gente madura, a poesia consistia numa força elementar que apenas os jovens poderiam suprir. Que, no processo de investir criativamente a energia vital, o poeta também se consumisse, sacrificando saúde, sanidade e vida, provava precisamente que, nesse ofício, não havia lugar para pessoas de idade avançada.
Ninguém personifica a tipologia da época tão bem quanto Aleksander Púchkin, que principiou a carreira fazendo poemas e, quando a terminou, estava se dedicando à prosa que seria o mister austero de um ancião: a histórica. No entretempo, ele confundiu todos os gêneros em sua obra-prima, "Ievguêni Oniéguin", um romance em versos que é, ao mesmo tempo, prosa e poesia sem ser nem poesia prosaica, nem prosa poética. E se sua morte (aos 37 anos, num duelo) não podia se harmonizar melhor com o Romantismo, é a partir de seu legado que compatriotas mais novos edificaram o romance realista russo.
Uma geração mais tarde a distinção entre poetas e prosadores se enraizara de tal maneira que Baudelaire podia escrever textos que antes seriam tomados como contos e chamá-los de poemas em prosa. Pois, então, tornara-se evidente que poetas e prosadores eram duas criaturas diferentes e, mesmo que um poeta escrevesse algo similar à ficção em prosa, isto seria, é claro, algum tipo de poema. Em linhas gerais, as distinções consolidadas um século e meio atrás continuam vigorando até hoje. E é irrelevante agora se elas decorrem da natureza das coisas ou se resultam de contingências históricas, porque a poesia e a prosa atuais estão ligadas àquilo que os poetas e prosadores são ou se tornaram e ao modo como eles se vêem.
Para todos os efeitos, o poeta moderno é um obsessivo e o prosador contemporâneo, um obstinado. O fato de que o romance se convertesse no exemplar acabado da arte da ficção garantiu que o prosador teria de trabalhar muito e suar a camisa anos a fio numa rotina diária até poder apresentar ao público seu produto. Quanto à poesia, ela se moldou em parte como contraposição a esse modelo. A longa epopéia, tão construída como um romance elaborado, tornou-se coisa do passado. O que os melhores poetas buscam ou almejam é a intensidade máxima de que a lírica seja capaz. Densidade e compactação, para bem ou mal, são as virtudes da melhor poesia de nosso tempo. O trabalho do poeta imita de certo modo algo da possessão ou do transe oferecidos ao leitor. Não se resume, porém, nisto.
A possibilidade de aquilatar o tempo e a seriedade investidos num romance coloca o prosador num patamar mínimo de prestígio abaixo do qual ele não desce. O prestígio do poeta, por seu turno, depende, na maioria das vezes, de um ato de fé, da aceitação, por parte dos críticos e leitores, da autenticidade de seu "transe". Mas, como na maioria dos afazeres semelhantes, esse transe é quase sempre falso, os poetas vivem sob suspeição permanente. Uma suspeição muito justa, diga-se de passagem, na medida em que, quando se trata de poesia, tudo é juízo de valor. E, como ao contrário do que o século 20 esperava, os critérios objetivos de julgamento não se materializaram, tampouco há razões para esperar algo diferente no futuro.


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