São Paulo, Sexta-feira, 04 de Junho de 1999
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TEATRO - CRÍTICA
Antunes traz a tragédia da guerra ao século 20

NELSON DE SÁ
enviado especial a Istambul

"Fragmentos Troianos", montagem de Antunes Filho para a tragédia pacifista de Eurípides, "As Troianas", estreou anteontem em Istambul, na Turquia, para uma platéia lotada e que aplaudiu longamente.
Mas os espectadores, em sua maioria intelectuais e estudantes turcos e estrangeiros, não se mostraram especialmente tocados pelas referências políticas do espetáculo às guerras étnicas nos Bálcãs e na própria Turquia.
Em contraste com "As Troianas" encenada pelo diretor romeno-americano Andrei Serban e apresentada com impacto em São Paulo há seis anos, a nova montagem evita deliberadamente a exuberância, a festa, em favor de uma certa contrição. Evita a grandiosidade da mise-en-scène, da iluminação, em troca do gesto mínimo, dos olhares desenhados, da voz engasgada.
A encenação segue, de certa maneira, o caminho aberto por "Prêt-à-Porter", peça anterior do grupo Macunaíma, "coordenada" por Antunes: são inúmeros quadros, cada um com desenvolvimento próprio, diferenciado na interpretação, na marcação/coreografia, por vezes nos cantos corais -estes sempre em "fonemol", a língua sem sentido usada pelo diretor desde o início da década.
Nos ápices de cada cena, "Fragmentos Troianos" namora o patético, o ridículo trágico.
O momento em que alcança maior êxito nessa busca, não à toa, é também a grande passagem de toda a peça.
Vencedores da guerra de Tróia, os gregos cercam as viúvas troianas para tirar o filho de Andrômaca, último troiano vivo e herdeiro do trono. O coro de troianas tenta proteger a jovem mãe, mas os guerreiros acabam abrindo caminho entre o amontoado de mulheres -e o arauto Tautíbio penetra para arrancar o bebê.
Enquanto a criança (um boneco) é levada para ser jogada do alto das muralhas, o coro de troianas entra em histeria -e a peça abandona o que pudesse restar de realismo, entrando pelo patético: elas rolam pelo palco, levantam-se e voltam a rolar várias vezes, do fundo para a boca de cena.
É a imagem do desespero das mães troianas, em coro tornadas "mater dolorosa", como já se escreveu sobre Hecuba, a rainha destronada de Tróia.
As cenas todas de "Fragmentos", não apenas essa, são fortemente coreografadas, com metáforas visuais bem definidas, o que é próprio de Antunes.
Em tais desenhos, destaca-se quase sempre a figura alta, longilínea, de rosto expressivo, sublinhado pelo figurino, de Sabrina Greve, que faz Andrômaca. Por outro lado, ela sobressai por conseguir usar as diversas indicações formais do papel -de voz, postura, andar- em favor de sua atuação, que é exterior, voltada para fora, para o público.
Como Hecuba, a atriz Gabriela Flores, levada pelas mesmas exigências formais, mas ainda mais constrangida por figurino e maquiagem, vai em caminho oposto, atuando para dentro, para baixo, mas com espasmos da grande intérprete entrevista em "Prêt-à-Porter".
O encenador Antunes Filho cuidou de trazer "As Troianas" para o século 20 na cenografia, nos figurinos, nas marcações -ainda que muito inspirado no texto de Eurípides.
As troianas, assim, apresentam sinais de todas as mulheres "asiáticas", como vai o texto, sejam judias da Segunda Guerra Mundial ou muçulmanas hoje, sempre viúvas da intolerância étnica. Os guerreiros gregos, de seu lado, podem ser alemães ou norte-americanos, mas serão sempre opressores do Ocidente.
A cenografia, além do telão ao fundo que aproxima a destruidora Palas Atena da Estátua da Liberdade, traz cercas da Bósnia em meio a muralhas troianas, que se confundem com as construções dos campos de concentração. Nos figurinos, vestes muçulmanas se mesclam harmoniosamente aos pesados casacos de inverno das judias polonesas.


Avaliação:



O jornalista Nelson de Sá viajou a convite do festival de Istambul.

O colunista José Simão está em férias.


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