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CONTARDO CALLIGARIS
O momento atual e a mediocridade das "elites"
Na inauguração da nova
Daslu, muitos comentaristas salientaram o contraste entre
a loja de luxo e a favela que está
nas suas costas: era uma imagem
da contradição do país, entre a riqueza que esbanja e a miséria que
dói.
Uma reportagem registrou o comentário de uma funcionária da
Daslu, que mora na favela vizinha: ela disse que esperava um
dia entrar na loja pela porta da
frente, como cliente.
Pensei assim: se a desigualdade
(por monstruosa que seja) não
paralisa, se ela não mata a esperança, talvez o país esteja se tornando "moderno". Quem sabe,
ao menos no universo urbano de
São Paulo, a desigualdade não
funcione mais como uma marca
que decide para sempre quem
pertence à casta dos donos e
quem à dos escravos.
Duas semanas atrás, a Polícia
Federal invadiu a Daslu, denunciando uma sonegação tosca pelo
tamanho e pela grosseria. Segundo a PF, a coisa funcionava assim: um objeto de grife que valia
R$ 1.000 era comprado no exterior por uma exportadora laranja, que vendia o objeto para a loja, faturando-o, digamos, por R$
10. Conseqüência: a loja pagava o
imposto de importação de uma
bugiganga. Obrigatoriamente,
uma parte consistente dos lucros
do varejo deveria ser sonegada,
para pagar (por baixo do pano,
no exterior) o valor original do
objeto.
Com isso, um detalhe crucial foi
acrescentado à vinheta do palacete ao lado da favela urbana: o
pretenso "templo da elegância"
seria a máscara que disfarça uma
careta dinheirista.
Tenho simpatia pela "futilidade" das aparências. Sei, por exemplo, que, desde o fim do século 18,
os dândis (que fizeram da elegância um culto) tiveram uma função decisiva na revolução social
moderna. A idéia era a seguinte:
se o critério da elegância substituísse o da nobreza de berço,
qualquer um poderia ser elite;
bastaria que fosse elegante. Disraeli (que era um dândi) tornou-se primeiro-ministro da rainha
Vitória porque sua elegância contou mais que sua origem judaica
(que, em princípio, impedia que
ele tivesse acesso a tamanho cargo).
Mas sei também que, para os
dândis, a elegância era "fineness": uma fineza rica de implicações morais. Por exemplo, o cuidado frívolo com as aparências
-do nó da gravata ao corte das
calças- era também uma revolta do bom gosto contra as feiúras
do capitalismo incipiente: a fábrica, o gueto operário, a monotonia
do trabalho e, enfim, a obscenidade da sede de lucros. Sem essas
implicações morais, as roupas elegantes seriam apenas babadouros para comedores vorazes.
Em "O Retrato de Dorian
Gray", Oscar Wilde (outro dândi)
conta a história de um jovem
aristocrata que continua bonito e
elegante, inalterável graças a algum botox mágico, enquanto sua
vida devassa deforma grotescamente seu retrato, escondido no
sótão. Pois bem, se as denúncias
em curso se confirmarem, a Daslu
será o Dorian Gray das "elites"
econômicas, pretensamente "elegantes".
Agora, consideremos outra "elite", a política. Está mais que confirmado: a vida política nacional
é, em grande parte, financiada
por "caixas dois", cuja existência
supõe uma série de assaltos à coisa pública. 1) Contribui-se às
campanhas com dinheiro frio (sonegado); 2) As contribuições ficam ocultas, criando alianças e
dívidas escusas, que, portanto, 3)
Podem ser cobradas às escondidas, depois das eleições, sob forma
de favores da administração pública. 4) Com isso, a hipertrofia
da máquina do Estado e sua corrupção se tornam necessárias para recompensar as doações de
campanha. Nesse círculo, a "elite"
econômica ganha dinheiro, a "elite" política ganha poder, e o povo
fica a ver navios.
Nos escândalos do passado,
aconteceu que a "elite" política,
invejosa da "elite" econômica,
prelevasse um dízimo para uso
pessoal. Parece que a "elite" política de hoje foi seduzida por outro
tipo de cobiça: a do poder pelo poder. A necessidade de retribuir as
"dívidas" do "caixa dois" é um
bom pretexto para esquecer-se do
único fim que confere legitimidade a qualquer poder: o de governar no interesse de todos.
Neste momento, meu estado de
espírito (e o da maioria dos brasileiros, provavelmente) é uma espécie de decepção, mais triste que
raivosa. É sempre doloroso e desanimador descobrir que as figuras que pairam acima da gente
não têm legitimidade.
De fato, uma "elite" econômica
que pratica uma "elegância" sem
implicações morais não tem legitimidade. Assim como não há votos que possam conferir legitimidade a uma "elite" política que
governa para pagar sua própria
eleição. Ambas parecem ser "elites" com aspas, roupagens vazias,
ternos ou tailleurs sem espessura.
Uma nota relativamente otimista. Um amigo me sugeriu a
idéia seguinte: a mediocridade
das "elites" seria o efeito inevitável de uma mobilidade social acelerada, pois, nesse caso, as "elites"
econômicas ou políticas se constituem sem ter a chance de crescer
culturalmente. Só lhes sobra o
tempo para comprar um acessório de grife ou para encomendar o
paletó num bom alfaiate; imaginam que seja o suficiente para
convencer o povo de que elas são
mesmo "elites". Com aspas.
@ - ccalligari@uol.com.br
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