São Paulo, sexta-feira, 04 de agosto de 2006

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Crítica/Cirque du Soleil

Globalização atropela o circo

HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Perguntam a mim: "Você gostaria de trabalhar no Cirque du Soleil?". E eu respondo: "Não!". Prefiro ser o dono. Se é para sonhar, que seja em me tornar milionário. E é difícil separar o espetáculo do business de milhões, quando o único esforço do elenco em falar português foi para agradecer aos patrocinadores.
"Saltimbanco" tem 15 anos. É o Brasil recebendo o fim da linha das turnês internacionais. Talvez uma crítica a esta altura não faça diferença, mas não posso deixar passar ao largo o valor simbólico que gera, a visibilidade que dignifica a atividade. O problema é saber se o circo brasileiro desfrutará disso.
O mais interessante de "Saltimbanco" (ingressos esgotados) não reside no apelo de produção suntuosa e alta tecnologia. Ao contrário, é no talento e apuro técnico dos artistas que o melhor do circo vem à tona. A equilibrista no arame bambo, o mastro chinês com acrobatas vigorosos e a maca russa com seus vôos impressionantes misturam adrenalina e alegria no coração do público.
O palhaço-mímico desfaz o mito de que a tal indústria tira a identidade de seus artistas. Sozinho no picadeiro, joga e improvisa com a platéia, desconcertando até o ego do apresentador de telejornal convocado para a cena. Revela o rei nu, humaniza a celebridade de Chico Pinheiro, como seria com qualquer outro cidadão. E o humor se traduz em lirismo.
A força dos números engole a dramaturgia. A aventura de um menino que se transforma no saltimbanco do título não chega a se cumprir. E o espetáculo de variedades passa a obedecer à fórmula mais tradicional, o que não é nenhum demérito. Traz os altos e baixos de números não-integrados entre si. Coreografias coletivas de gestos uníssonos empobrecem números primorosos. Caso dos palhacinhos-malas que roubam a atenção enquanto queremos ver a equilibrista no arame.
A apresentação das dificuldades, assim como os constantes pedidos de aplausos, são formas narrativas que não respeitam a inteligência da platéia. Coisa superada nos picadeiros do mundo e até do Soleil em suas últimas montagens, mais instigantes e ousadas.
A música de espírito new age tira um tanto da vibração que a peça tem, como se quisesse ser mais séria e comportada. Sempre saí alegre do circo.
Desta vez, saí um pouco angustiado por constatar o provincianismo de uma elite que desconhece nossos maiores talentos, criatividade e valores. Hesitei, pensando que achariam que escrevo por inveja. Não tenho que temer dar minha opinião. Se não desse, morreria como artista. Quem empreende não tem medo de parecer despeitado. Os covardes, que desistem dos sonhos, é que ficam no ranço da reclamação.
Doloroso é saber que, talvez, o que venha a instigar o público serão perguntas como: por que a pipoca é R$ 12? Por que o estacionamento é R$ 20? São as dúvidas do mundo do consumo. A globalização atropela até mesmo o circo. E a arte que se vire para concluir que a colonizada miséria nos pertence.


HUGO POSSOLO, 44, é palhaço, ator e diretor do grupo Parlapatões e do circo Roda Brasil

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