São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2007

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Crítica/narrativa

Lacerda faz novela com referências reais

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Descrito como "autobiografia não autorizada", "As Flores do Jardim da Nossa Casa" é em parte um livro de não-ficção, em parte "roman à clef", em parte um romance propriamente dito. Marco Lacerda -jornalista que escreveu em grandes veículos da imprensa e autor de "Favela High Tech", cujos direitos de filmagem foram comprados pela produtora de "Carandiru"- conta, em parte, sua história aqui.
Mas, como nem tudo pode ser dito no Brasil sem açular a ira da indústria do processo, alguns personagens recebem nome falso. Cabe ao leitor, munido das dicas fornecidas pelo livro, descobrir quem seria quem. Daí a porção "roman à clef" (literalmente, romance com chave), em que figuras conhecidas se ocultam sob a capa da ficção. Há, igualmente, o lado ficcional, nem sempre fácil de separar do relato, pois os elementos narrativos mais ostensivos -como o uso da reviravolta, do gancho e do suspense- espalham-se pelo livro.
A própria história começa de modo dramático. Na véspera de completar 40 anos, o narrador é despertado de seu sono narcômano por dois assaltantes, que o ameaçam de morte. O reconhecimento de um deles pelo narrador -o criminoso é um ex-garoto de programa que ele conhecera em Belo Horizonte- dá início à longa seção rememorativa que ocupa o centro da obra e traz implicações para o desenrolar da trama.
E, no fulcro desse "de profundis" memorialístico, está a figura do pai. Alcoólatra, taciturno, violento, agressor da mulher, ele não perdoa o filho, homossexual. Não é à toa que a relação homossexual quase não se paute pelo amor, mas por imagens de posse, de poder, de perdição, de inferno.
A primeira relação do narrador é com um estuprador; a segunda, com uma "fera dissimulada", além do garoto de programa/assaltante de cujos olhos grandes "chamas saltam". Sua experiência lhe ensina a ver a genitália como uma "armadilha que o pode levar ao fogo do inferno".
Pena que todas essas inferências, fortes, embora nada politicamente corretas, se percam, às vezes, em longas e desnecessárias digressões sobre a carreira. Lacerda, por exemplo, faz questão de mencionar como conheceu Caetano Veloso, quando o cantor "era estrela com brilho próprio, e esse brilho, o tempo haveria de provar, era eterno", para depois enfastiar o leitor com quatro páginas de depoimento do menestrel.
São platitudes acessórias que ameaçam a base desta obra corajosa. Felizmente, para a narrativa, logo vêm a epidemia de Aids e a morte do pai. Curioso que os dois fatos, de causas desvinculadas, ocorram quase ao mesmo tempo. Uma paixão do autor morre, vítima da doença, enquanto o algoz paterno sucumbe ao prolongado alcoolismo. Ambos ressurgirão, na pele do assaltante. Amor e morte andam juntos aqui.


AS FLORES DO JARDIM DA NOSSA CASA
Autor:
Marco Lacerda
Editora: Editora Terceiro Nome
Quanto: R$ 34 (224 págs.)
Avaliação: bom


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