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Crítica/narrativa
Lacerda faz novela com referências reais
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Descrito como "autobiografia não autorizada",
"As Flores do Jardim
da Nossa Casa" é em parte um
livro de não-ficção, em parte
"roman à clef", em parte um romance propriamente dito.
Marco Lacerda -jornalista
que escreveu em grandes veículos da imprensa e autor de
"Favela High Tech", cujos direitos de filmagem foram comprados pela produtora de "Carandiru"- conta, em parte, sua
história aqui.
Mas, como nem tudo pode
ser dito no Brasil sem açular a
ira da indústria do processo, alguns personagens recebem nome falso. Cabe ao leitor, munido das dicas fornecidas pelo livro, descobrir quem seria
quem. Daí a porção "roman à
clef" (literalmente, romance
com chave), em que figuras conhecidas se ocultam sob a capa
da ficção. Há, igualmente, o lado ficcional, nem sempre fácil
de separar do relato, pois os elementos narrativos mais ostensivos -como o uso da reviravolta, do gancho e do suspense- espalham-se pelo livro.
A própria história começa de
modo dramático. Na véspera de
completar 40 anos, o narrador
é despertado de seu sono narcômano por dois assaltantes,
que o ameaçam de morte. O reconhecimento de um deles pelo
narrador -o criminoso é um
ex-garoto de programa que ele
conhecera em Belo Horizonte- dá início à longa seção rememorativa que ocupa o centro da obra e traz implicações
para o desenrolar da trama.
E, no fulcro desse "de profundis" memorialístico, está a
figura do pai. Alcoólatra, taciturno, violento, agressor da
mulher, ele não perdoa o filho,
homossexual. Não é à toa que a
relação homossexual quase não
se paute pelo amor, mas por
imagens de posse, de poder, de
perdição, de inferno.
A primeira relação do narrador é com um estuprador; a segunda, com uma "fera dissimulada", além do garoto de programa/assaltante de cujos
olhos grandes "chamas saltam". Sua experiência lhe ensina a ver a genitália como uma
"armadilha que o pode levar ao
fogo do inferno".
Pena que todas essas inferências, fortes, embora nada politicamente corretas, se percam, às
vezes, em longas e desnecessárias digressões sobre a carreira.
Lacerda, por exemplo, faz questão de mencionar como conheceu Caetano Veloso, quando o
cantor "era estrela com brilho
próprio, e esse brilho, o tempo
haveria de provar, era eterno",
para depois enfastiar o leitor
com quatro páginas de depoimento do menestrel.
São platitudes acessórias que
ameaçam a base desta obra corajosa. Felizmente, para a narrativa, logo vêm a epidemia de
Aids e a morte do pai. Curioso
que os dois fatos, de causas desvinculadas, ocorram quase ao
mesmo tempo. Uma paixão do
autor morre, vítima da doença,
enquanto o algoz paterno sucumbe ao prolongado alcoolismo. Ambos ressurgirão, na pele
do assaltante. Amor e morte
andam juntos aqui.
AS FLORES DO JARDIM DA NOSSA CASA
Autor: Marco Lacerda
Editora: Editora Terceiro Nome
Quanto: R$ 34 (224 págs.)
Avaliação: bom
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