São Paulo, sexta, 4 de setembro de 1998

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LOLITA DE STANLEY KUBRICK

O velho transmite patologia do amor

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A primeira "Lolita" do cinema veio ao mundo cercada de superstições. Vladimir Nabokov só consentiu em escrever o roteiro após ter tido um sonho que foi, para ele, uma "iluminação".
Stanley Kubrick, por sua vez, viu Sue Lyon e logo teria reconhecido nela uma "atriz nata".
Quanto ao roteiro, Kubrick teve de abrir concessões para tornar o filme palatável à censura dos anos 60. Quanto à jovem atriz, Sue Lyon mostrou ser um ponto fraco do filme -não acompanha Shelley Winters, que faz sua mãe, a viúva Haze, e muito menos James Mason como Humbert Humbert.
A censura atingiu o filme em um ponto nevrálgico: é justamente a pedofilia de Humbert que teve de ser colocada em relativa surdina.
Para compensar essas deficiências, Kubrick usou como força a idéia de paixão como estado anômalo. Não é algo alheio a seu cinema. Em "Glória Feita de Sangue" (57), os militares eram como máquinas de fazer guerra, colocando as necessidades da hierarquia acima dos sentimentos e ao largo da justiça e da cidadania. Em "2001" (68), os astronautas só se revelam humanos ao espectador a partir do momento em que Hal-9000, o computador de bordo, enlouquece (e, de certa forma, mostra-se mais humano do que eles).
Em "Lolita", Humbert Humbert é uma máquina desejante. O fato de Lolita ser uma menina acentua esse traço da insânia amorosa: o objeto amoroso é algo que se elege como objeto, ponto.
Ou, antes, ponto e vírgula. As coisas não terminam aí, mas começam. O que são as características que a Humbert podem parecer diabólicas em Lolita, exceto as que ele lhe atribui? Lolita é um vazio, o que Lyon acentua -em oposição à sua mãe, toscamente humana.
Justamente por ser nada, Lolita é facilmente preenchível pelo imaginário de Humbert.
Assim, o filme acaba tirando partido de seus desencontros. A obsessão de Humbert, a frieza de Lolita e a humanidade bonachona da mãe acabam por se complementar, criando uma homogeneidade de suas diferenças.
Não obstante, "Lolita" transmite uma sensação de frieza que vem, em parte, do estilo de Kubrick. Herdeiro do grande cinema de espetáculo, o cineasta faz da noção de espetáculo sua pedra de toque. Os seres não estão lá para ser, mas para se transformar em imagens. É como se ele previsse e criticasse o mundo em que estamos mergulhados, em que as pessoas são a imagem que criam de si mesmas (exemplo: a propaganda eleitoral).
Em parte, no entanto, essa frieza não é tão desejável. Se o triângulo Lolita/Humbert/Haze funciona apesar de seus desencontros (ou talvez por causa deles), o filme não integra a seu sistema um quarto e decisivo personagem, Quilty (Peter Sellers), sedutor de Lolita.
Ele não chega a se conformar plenamente nem como existência autônoma, nem como criação da imaginação amorosa (portanto anormal) de Humbert.
Se a espécie de limbo em que fica Quilty ajuda a explicar a insatisfação que o próprio Kubrick sentiu em relação a seu trabalho, não chega a descaracterizar a reflexão demoníaca que o filme desenvolve sobre o amor como estado patológico em que todos somos ora Humbert, ora Lolita.

Filme: Lolita
Produção: Reino Unido, 1962
Direção: Stanley Kubrick
Com: James Mason, Sue Lyon, Shelley Winters, Peter Sellers
Quando: estréia 11 de setembro, em São Paulo




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