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São Paulo, terça-feira, 04 de novembro de 2003

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FERNANDO BONASSI

Love Story

É desses hotéis no começo da São João, onde os quartos recortados de paredes têm seis ou sete lados, fazendo os hóspedes se vestirem sentados pra não bater em qualquer coisa. Tem população flutuante e hóspedes fixos. Seu Mário é um desses. Maquinista aposentado da Santos-Jundiaí, tinha passado dos 70 fazia um certo tempo. Viu as cidades variarem do matagal pra terra aplainada e ainda acompanhou as casas e as famílias que iam nascendo e morrendo ao longo da linha. Gostava de peixe. Andava na praia. Molhava o pé no Zé Menino durante a folga na Baixada. Não era um salário ruim.
Seu Mário tinha um sonho esquisito: morar em hotel. Chegou a propor pra mulher. Mais de uma vez. Ela só não largou dele porque Seu Mário acabou cedendo. Cedeu de bom gosto. Gostava daquela velha. Quando ficou viúvo, decidiu que mulher não era mais assunto pra ele. Pôs a casa pra alugar, chamou os vizinhos e mandou que pegassem o que quisessem, dele ou da falecida. Seu Mário ficou sentado enquanto levavam geladeira, fogão, panelas, penduricalhos, móveis... só restou a cadeira em que se sentara, que ninguém teve coragem de pedir pra ele tirar o traseiro dela. Pegou a lista, o telefone e ficou ligando até achar o tal hotel com café da manhã incluído que coubesse no dinheiro dele. Achou esse.
Quando Seu Mário chegou, "esse" hotel já não era mais "aquele"... Tomava o café incluído; almoçava nos quilos por perto, enchia a cara e via televisão.
Os quartos têm portas entre eles. Roncos, tosses, perfumes e chulés vazam de uns pros outros. Com a alta rotatividade, Seu Mário começou a ouvir o que não queria. Casais que se casavam e se fartavam. Tudo muito rápido. O período é de três horas.
Não lembra se o nome era Laura.... ou Amanda... de uns tempos pra cá a memória do Seu Mário deu pra falhar. Ele lembra que, da primeira vez, acordou com aquela bronca:
- Hoje é o nosso dia?! Tem certeza?! E como é que você me traz num pardieiro desses bem no "nosso dia"?!
Seu Mário procurou ouvir o homem com ela, mas ele tinha preferido se calar. Era sábio.
- Essa cama? Olha! Mancha no lençol?! Do quê?! É um pardieiro!
Seu Mário acendeu um cigarro e ficou esperando. A mulher (Marta? Kássia? Vanusa?) começou a chorar. Dizia pro outro que ele a humilhava e que abusara da sua dedicação "por todos esses anos". Então Seu Mário ouviu como se a cama fosse arrastada, um tapa, depois um suspiro aflito:
- Você me acha velha demais... é isso.
Seu Mário terminou o cigarro sem ouvir mais nada. Quando estava esmagando no cinzeiro, alguém saiu de lá chutando. A mulher (Eveline? Pâmela? Jussara?) ficou chorando de fininho, como se estivesse esganada. Seu Mário passou a tarde sentado na cadeira que trouxera consigo.
Como anoiteceu e a mulher (Selma? Waleska? Rogéria?) continuava do mesmo jeito, Seu Mário tomou coragem e bateu na porta. Quando olhou pra cara toda borrada da mulher (Tunica? Tônia? Sônia?), os 50 e tantos que ela tinha pareciam um pouco mais. Um pé descalço e outro numa bota de meio metro de altura. A saia era curta e mesmo com a meia grossa dava pra ver o que não se podia disfarçar. Seu Mário ficou ali sem saber o que fazer. Depois disse:
- Passei a tarde inteira ouvindo a senhora...
- Senhora!?
A mulher (Joelma? Adriene? Luci?) chorou ainda mais forte, deixando escorrer umas lágrimas pretas de maquiagem. Seu Mário tirou um lenço do bolso e passou pelo rosto dela. Piorou, mas ela também não queria se olhar no espelho. Ficou foi olhando pro Seu Mário e fungando. Em seguida caminhou na direção dele como se tivesse aprendido a andar naquela hora, abraçou apertado e chorou até ficar seca.
Seu Mário levou a mulher (Joana? Demétria? Carla?) até o banheiro, ligou o chuveiro e saiu. Desceu até a cozinha para pegar um pão com queijo e um copo de leite bem doce, pra dar força. Na volta, a mulher (Bruna? Bárbara? Marlene?) continuava no mesmo lugar. Seu Mário então a colocou no chuveiro e deixou escorrer bastante água morna pelos cabelos. A água também ficou preta de tintura, mas eles não comentaram esse assunto. Depois passou sabonete com o cuidado que se tem com uma coisa minúscula; enxaguou, secou e a pôs sentada na cama. A mulher (Judith? Verônica? Elizete?) acabou caindo e dormindo. No dia seguinte, quando Seu Mário foi bater, ninguém atendeu. Na portaria, disseram que tinha partido.
Uma semana depois a porta do quarto do Seu Mário se abre, e a mulher (Carla? Clarice? Bianca?) estava lá. Disse que tinha ido agradecer e agradeceu retribuindo o que Seu Mário tinha feito. Deu banho, fez massagem e o pôs pra dormir...
Encurtando essa história, que o espaço tá acabando e que tem tudo pra incomodar o sossego da falecida: o nome que ele escolheu pra chamar a mulher acabou ficando Virgínia, por causa de uma vedete que conheceu e nunca esqueceu. Essa Virgínia desaparece uns tempos, mas volta. Sempre volta pra ficar com ele e darem-se banhos e coisa e tal... O dois até chamam esses dias de "o dia deles"... bem naquele pardieiro!


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