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29ª MOSTRA DE CINEMA
"O MUNDO"
Jia Zhang-ke analisa o mal-estar atual
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Já é sabido que nem tudo o que
reluz é ouro. Da mesma forma,
nem todo filme que vem do
Oriente merece toda a atenção de
um público obrigado a se pulverizar entre centenas de produções,
como acontece na Mostra. Ao
contrário de "O Mundo", de Jia
Zhang-ke, que venceu o prêmio
da crítica e merece muito mais do
que se consegue em cenário tão
inflacionado de imagens.
Em seu quarto longa (ele dirigiu
"Plataforma" e "Prazeres Desconhecidos"), o cineasta chinês
mais ousado de sua geração atinge um patamar inquestionável de
importância que ultrapassa todos
os exotismos e esteticismos que
ainda servem de foco de atração
para muitas platéias ocidentais.
Com um título não menos
abrangente do que o retrato que
consegue traçar, "O Mundo" fala
da vida hoje, de um modo que se
faz entender com clareza por habitantes tanto de Pequim quanto
de São Paulo, assim como de
qualquer metrópole mundial.
Para isso Jia lança mão de uma
idéia simples e genial: seus personagens são empregados de um
parque temático na linha Epcot
Center, com réplicas em escala reduzida de monumentos das principais capitais do mundo. Ali, as
pirâmides egípcias estão a dois
passos do Big Ben londrino, da
Torre Eiffel parisiense avistam-se
as torres gêmeas do World Trade
Center ("que esqueceram de destruir"). Ou seja, Jia ocupa um espaço real (o parque realmente
existe na periferia de Pequim) para expressar numa só tacada a
abolição do espaço no mundo
contemporâneo (o famoso mundo virtual em que vivemos).
O parque não deixa também de
ser uma versão contemporânea
do campo de concentração, só
que, em vez dos trabalhos forçados, aqui é a diversão, sob a forma
de ilusão, que não pode parar.
A abolição do espaço, por sua
vez, ganha amplitude de significados quando Jia mergulha na humanidade que habita esse mundo, através de vidas contadas por
histórias de amor e de dor. Como
os monumentos que habitam,
seus personagens estão a passos
uns dos outros, mas para tentar se
comunicar precisam de celulares.
Por mais que tentem, é a comunicação, premissa para qualquer
tentativa de humanidade, que se
perdeu. Jia narra isso com recursos simples e encantadores: o namorado que exige que a amada
utilize um GSM para ele ter controle de onde ela está; o casal que
troca carinhos por meios de animações transmitidas pelo celular.
Por outro lado, a dançarina Tao se
entrelaça afetivamente à colega
russa porque as duas resolvem se
entender quando cada uma fala
uma língua ignorada pela outra.
Nesse jogo entre perto e longe,
em que a visão humanista de Jia
disputa cada palmo já perdido para o processo cotidiano de desumanização, "O Mundo" oferece
uma compreensão superior e lúcida sobre o mal-estar contemporâneo.
(CÁSSIO STARLING CARLOS)
O Mundo
Direção: Jia Zhang-ke
Quando: hoje, às 21h40, no Cineclube Vitrine
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