São Paulo, sexta-feira, 04 de novembro de 2005

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CINEMA

"Cidade Baixa", de Sérgio Machado, abre ciclo de novos filmes que desconstroem o estereótipo do Nordeste brasileiro

Sertão ressurge na tela com olhos verdes

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Mudou. O Nordeste visto pelo cinema brasileiro já não é o mesmo de céus imensamente azuis e sertanejos de chapéu, reduzidos à pobreza e à ignorância.
Começa a chegar às telas -com a estréia, hoje, de "Cidade Baixa", do baiano Sérgio Machado- uma safra de filmes que reinterpretam o sertão, o litoral e o homem do Nordeste, numa chave não-alegórica.
"Eu queria destruir a idéia do nordestino como "bom selvagem': o homem apático, simpático, bonzinho, que faz rir da própria ignorância", diz o pernambucano Marcelo Gomes, diretor de "Cinema, Aspirinas e Urubus", que será lançado na próxima sexta, dia 11.
No longa de Gomes, primeiro de sua carreira, o sertão é palco para o encontro de dois retirantes. O alemão Johann (Peter Ketnath, alemão de fato) deixa seu país com um emprego de mascate ultramarino, na tentativa de escapar da Segunda Guerra. É 1942.
O caminho de Johann cruza o do sertanejo Ranulpho (João Miguel, ator baiano), ávido para sair do contexto que o angustia: "Aqui [tudo] é seca e pobre", diz. "Mas pelo menos não cai bomba do céu", retruca o alemão.
Ketnath não é o único louro, alto (1,85 m), de olhos verdes, a habitar esse novo Nordeste da cinematografia nacional.
Em "Árido Movie", do pernambucano Lírio Ferreira, com estréia prevista para março de 2006, é o ator Guilherme Weber, com seu 1,93 m, quem interpreta o protagonista Jonas, nordestino que migrou para o Sudeste e retorna à cidade natal, para o enterro do pai.
"A permanência no sertão é raramente voluntária. Essa obrigatoriedade de ficar lá ou de voltar é transformadora, como toda viagem. Talvez por isso o cinema se debruce tanto sobre o tema", afirma Weber.
As proximidades entre "Cinema, Aspirinas e Urubus" e "Árido Movie" vão além do biotipo de seus atores. Em um e outro, a paisagem do sertão é áspera como há muito não se via e acentuada por uma luz que maltrata a vista.
Gomes diz que "dias tórridos e noites escuras" são a realidade da região e conta que advertiu seu diretor de fotografia, Mauro Pinheiro Jr.: "Se tiver um céu azul neste filme, você está demitido".
Mais do que dado estético (ou cosmético), o tom azul, freqüente em filmes recentes sobre o Nordeste brasileiro, incomoda Gomes por seu efeito de "criar uma proteção aos personagens". Com tanta beleza, "por que alguém quer sair de um lugar assim?", indaga o diretor.

Signos
Para Ferreira, o ponto de contato dos filmes é que tratam o Nordeste "sem uma visão distorcida de fora" e são capazes de representar o homem nordestino como "dominante de seu signos e integrado aos seus espaços".
É semelhante a opinião do cineasta Karim Aïnouz ("Madame Satã") sobre as coincidências da nova safra, da qual ele participa como co-autor dos roteiros de "Cidade Baixa" e de "Cinema, Aspirinas e Urubus".
Ele lembra que o Nordeste é visto "constantemente com uma presença do arcaico ou do futuro, sem o entretempo do presente". Os novos filmes desses diretores nordestinos teriam o mérito de contrariar a fórmula, ao se lembrar de "representar um sujeito no tempo e no espaço".
Aïnouz acaba de dirigir um longa também ambientado no sertão e ainda sem título definitivo. "Não vou ser pretensioso de afirmar que é inovador, mas acho que existe um frescor nesse desejo de olhar para o Nordeste e o sertão de um modo muito contemporâneo", afirma.

Semelhanças
Olhar para os sujeitos em sua singularidade foi tudo o que Machado pretendeu com "Cidade Baixa", sua primeira ficção, que sucede o documentário "Onde a Terra Acaba" (2001).
"Quando você vê de longe um travesti, uma puta, um malandro, o que ressalta é a diferença. Quando olha de perto, percebe o quanto são semelhantes", diz.
Para garantir que "o filme fosse fiel" ao universo que retrata, Machado passou três meses vivendo na região de Salvador (BA) que é cenário e título de seu longa.
"Os personagens de "Cidade Baixa" enfrentam um cotidiano difícil, mas lutam para sobreviver e ser felizes", diz o diretor.
Ou seja, no sertão ou na cidade, a luta dos nordestinos é a de sempre. A novidade é que as batalhas foram filmadas como nunca.


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