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CINEMA
"Cidade Baixa", de Sérgio Machado, abre ciclo de novos filmes que desconstroem o estereótipo do Nordeste brasileiro
Sertão ressurge na tela com olhos verdes
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Mudou. O Nordeste visto pelo
cinema brasileiro já não é o mesmo de céus imensamente azuis e
sertanejos de chapéu, reduzidos à
pobreza e à ignorância.
Começa a chegar às telas -com
a estréia, hoje, de "Cidade Baixa",
do baiano Sérgio Machado-
uma safra de filmes que reinterpretam o sertão, o litoral e o homem do Nordeste, numa chave
não-alegórica.
"Eu queria destruir a idéia do
nordestino como "bom selvagem':
o homem apático, simpático,
bonzinho, que faz rir da própria
ignorância", diz o pernambucano
Marcelo Gomes, diretor de "Cinema, Aspirinas e Urubus", que será
lançado na próxima sexta, dia 11.
No longa de Gomes, primeiro
de sua carreira, o sertão é palco
para o encontro de dois retirantes.
O alemão Johann (Peter Ketnath,
alemão de fato) deixa seu país
com um emprego de mascate ultramarino, na tentativa de escapar
da Segunda Guerra. É 1942.
O caminho de Johann cruza o
do sertanejo Ranulpho (João Miguel, ator baiano), ávido para sair
do contexto que o angustia: "Aqui
[tudo] é seca e pobre", diz. "Mas
pelo menos não cai bomba do
céu", retruca o alemão.
Ketnath não é o único louro, alto (1,85 m), de olhos verdes, a habitar esse novo Nordeste da cinematografia nacional.
Em "Árido Movie", do pernambucano Lírio Ferreira, com estréia
prevista para março de 2006, é o
ator Guilherme Weber, com seu
1,93 m, quem interpreta o protagonista Jonas, nordestino que migrou para o Sudeste e retorna à cidade natal, para o enterro do pai.
"A permanência no sertão é raramente voluntária. Essa obrigatoriedade de ficar lá ou de voltar é
transformadora, como toda viagem. Talvez por isso o cinema se
debruce tanto sobre o tema", afirma Weber.
As proximidades entre "Cinema, Aspirinas e Urubus" e "Árido
Movie" vão além do biotipo de
seus atores. Em um e outro, a paisagem do sertão é áspera como há
muito não se via e acentuada por
uma luz que maltrata a vista.
Gomes diz que "dias tórridos e
noites escuras" são a realidade da
região e conta que advertiu seu diretor de fotografia, Mauro Pinheiro Jr.: "Se tiver um céu azul neste
filme, você está demitido".
Mais do que dado estético (ou
cosmético), o tom azul, freqüente
em filmes recentes sobre o Nordeste brasileiro, incomoda Gomes por seu efeito de "criar uma
proteção aos personagens". Com
tanta beleza, "por que alguém
quer sair de um lugar assim?", indaga o diretor.
Signos
Para Ferreira, o ponto de contato dos filmes é que tratam o Nordeste "sem uma visão distorcida
de fora" e são capazes de representar o homem nordestino como "dominante de seu signos e
integrado aos seus espaços".
É semelhante a opinião do cineasta Karim Aïnouz ("Madame
Satã") sobre as coincidências da
nova safra, da qual ele participa
como co-autor dos roteiros de
"Cidade Baixa" e de "Cinema, Aspirinas e Urubus".
Ele lembra que o Nordeste é visto "constantemente com uma
presença do arcaico ou do futuro,
sem o entretempo do presente".
Os novos filmes desses diretores
nordestinos teriam o mérito de
contrariar a fórmula, ao se lembrar de "representar um sujeito
no tempo e no espaço".
Aïnouz acaba de dirigir um longa também ambientado no sertão
e ainda sem título definitivo. "Não
vou ser pretensioso de afirmar
que é inovador, mas acho que
existe um frescor nesse desejo de
olhar para o Nordeste e o sertão
de um modo muito contemporâneo", afirma.
Semelhanças
Olhar para os sujeitos em sua
singularidade foi tudo o que Machado pretendeu com "Cidade
Baixa", sua primeira ficção, que
sucede o documentário "Onde a
Terra Acaba" (2001).
"Quando você vê de longe um
travesti, uma puta, um malandro,
o que ressalta é a diferença. Quando olha de perto, percebe o quanto são semelhantes", diz.
Para garantir que "o filme fosse
fiel" ao universo que retrata, Machado passou três meses vivendo
na região de Salvador (BA) que é
cenário e título de seu longa.
"Os personagens de "Cidade
Baixa" enfrentam um cotidiano
difícil, mas lutam para sobreviver
e ser felizes", diz o diretor.
Ou seja, no sertão ou na cidade,
a luta dos nordestinos é a de sempre. A novidade é que as batalhas
foram filmadas como nunca.
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