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Réplica
Frodon mostra ter visão colonialista
Cacá Diegues rebate declarações de Jean-Michel Frodon, ex-diretor da revista "Cahiers du Cinéma", à Ilustrada
CACÁ DIEGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Jean-Michel Frodon é um
dos melhores críticos europeus
de cinema. Ele já assinou uma
coluna de sucesso no jornal "Le
Monde" e foi diretor dos "Cahiers du Cinéma", o Novo Testamento da cinefilia universal.
Autor de excelentes livros, escreveu "La Projection Nationale", obra brilhante e indispensável sobre as relações entre cinema e nação.
Mas mesmo o mais fino intelectual europeu é, às vezes, vítima de uma tradição iluminista-voluntarista em que o mundo
acaba se dividindo em diferentes humanidades cujos papéis
estão sempre pré-determinados pela força mesma das coisas. Uma espécie de utopia à
custa dos outros. O cinema brasileiro é, nesse arquivo de
ideias, uma ficha cujos termos
não devem ser contrariados,
sob pena de maldição teórica.
Em entrevista à Ilustrada,
anteontem, Frodon
afirmou que o cinema latino-americano sofre de uma "dependência cultural de Hollywood", mas não se dá conta de
que outro modelo de colonialismo cultural, mais sofisticado, nos sufoca. Ele mesmo nos
dá a pista desse colonialismo
de esquerda (digamos assim),
quando sugere que o cinema
brasileiro devia ser como o que
ele julga ser o asiático, modesto, cooperativo, com "forte realismo", a fim de criar "uma pequena indústria".
Raramente um desses críticos se incomoda com a trajetória dos cinemas nacionais em
relação à história contemporânea dos países em que são produzidos. Não lhes ocorre tentar
entender o país através dos filmes realizados, em vez de
construir um país teórico através de filmes que não foram feitos. Não lhes ocorre que só vale
a pena ver o filme de um país
que não conhecemos se nos interessarmos em conhecê-lo tal
qual seus cineastas o veem.
Décadas atrás, o cinema novo brasileiro foi o primeiro fenômeno de "cinema nacional"
na história do cinema moderno
e os intelectuais europeus (sobretudo os franceses) foram
fundamentais para que isso se
tornasse conhecido e consagrado no mundo. Por causa dessa
repercussão, a economia cinematográfica brasileira ganhou
um pouco mais de musculatura, até chegar à primeira safra
de filmes coloridos ("Os Herdeiros", "Brasil Ano 2000", "O
Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro", "Macunaíma"). Conta Pierre Billard, antigo editor do semanário "Le
Point" e um dos editores da revista de cinema "Positif", que,
por essa época, encontrou em
Paris, de volta de uma viagem
ao Brasil, outro grande jornalista francês, Louis Marcorelles. Billard perguntou-lhe como estavam as coisas no país e
Marcorelles respondeu-lhe,
penalizado: "Ah, vai tudo muito
mal, imagine que eles agora estão fazendo filmes coloridos".
Os filmes de Fernando Meirelles são internacionais porque ele é hoje um dos melhores
e mais reconhecidos "filmmakers" do mundo. É natural que
produtores estrangeiros desejem trabalhar com ele. Não me
lembro de qualquer "frisson"
de críticos franceses quando
Truffaut foi fazer "Fahrenheit
451" em Londres; Démy, "Model Shop" em Los Angeles, ou
Malle, o extraordinário "Atlantic City", na cidade homônima.
Como toda uma nova geração de cineastas franceses, de
Luc Besson a Michel Gondry,
partiu para fazer filmes fora da
França e em inglês, produzindo
inclusive um épico sobre Joana
D'Arc na língua de quem a
mandou à fogueira.
Mas eles são adultos, sujeitos
às circunstâncias do mundo,
sofrem contingências econômicas, políticas e culturais, têm
o direito de mudar de ideia.
Eles e o trabalho deles podem
ser relativizados. Nós, não. Nós
somos os "beaux sauvages",
não podemos nos reconciliar
com nosso tempo, sob pena de
fazer fracassar a utopia dos civilizados, alimentada pela esperança do que pensam de nós.
O jovem cinema brasileiro
tenta se consolidar em seu próprio país, ganhar a confiança
dele. Como no resto do mundo,
onde quase todas as cinematografias nacionais, velhas ou novas, estão se dedicando à mesma tarefa, neste momento de
grande difusão do audiovisual.
Claro que não somos imunes
ao erro, mas estamos fazendo
nossos filmes com diversidade,
sem dogmas ou fronteiras intransponíveis, sem modelo
único. Aprisionar esse cinema
num projeto exclusivo, a partir
de um arquivo ideológico arcaico, é um crime colonial que não
devia mais caber no século 21.
Temos que ouvir atentamente um pensador do cinema da
qualidade de Frodon e todo
mundo tem o direito de gostar
ou não dos filmes que vê. Mas
cada macaco no seu galho -
quem diz como esses filmes devem ser é quem os faz.
CACÁ DIEGUES , 49, é cineasta
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