São Paulo, segunda-feira, 04 de dezembro de 2006

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GUILHERME WISNIK

Imitação da imitação


Novos shoppings nos EUA se assemelham a centros históricos, que, por sua vez, imitam os antigos shoppings

DEPOIS de cinco décadas de existência, o shopping center passa, nos Estados Unidos, por uma crise de identidade. Nos últimos três anos, proliferam novos centros de comércio e lazer que procuram recriar uma ambiência de cidade: são os chamados "lifestyle centers". Em tempos de progressiva conscientização ecológica e nostalgia dos espaços públicos, esses novos "malls" renegam a artificialidade dos caixotes enclausurados (com sua iluminação artificial, ar-condicionado, escadas rolantes, estacionamentos segregados) em nome de uma experiência de fruição ao ar livre, por meio de espaços cuja atmosfera informal convida o visitante (consumidor) a permanecer por mais tempo no local.
Localizados em áreas suburbanas, os "lifestyle centers" são como oásis no meio do deserto, ilhas acessíveis apenas por automóvel. Uma vez franqueado o seu portal de entrada, a partir da auto-estrada, abre-se um espaço formado por ruas tradicionais, pequenas praças com mesas dispostas casualmente e música ao vivo, árvores (muitas vezes de plástico) e edifícios baixos com lojas no térreo e apartamentos para moradia e escritórios logo acima. Algumas calçadas são cobertas por pérgolas com trepadeiras, os "passeios" têm arcadas imitando as cidades italianas, e o motorista deve procurar uma vaga para o carro ao longo dos meios-fios. Coerentemente, a propaganda de um desses centros diz o seguinte: "lugar agradável e vibrante, onde a comunidade toma forma, e a vida pública acontece".
É significativo que essa "fome" por espaços públicos só consiga realizar-se através de espaços privados, onde o cidadão é, por definição, um sujeito consumidor. Outra ironia é o fato de esses shoppings, em segundo grau, seguirem à risca a cartilha do pensamento urbanístico recente, que elaborou as críticas mais ácidas à cidade das vias expressas dominada por edifícios comerciais.
Isto é, reconstituem espaços baseados na proximidade, na vizinhança, e na escala do pedestre, qualificados pela diversidade tipológica e pelo uso misto (comércio, serviços, escritório e moradia). É preciso reconhecer que tais lugares são, provavelmente, mais agradáveis do que os corredores de shoppings tradicionais, emboras expostos à imponderabilidade da natureza (sol, chuva, frio etc). Mas de que serve esse cenário de diversidade quando apartado da energia vital verdadeiramente urbana?
Quer dizer, enquanto o consumo massificado se dirige progressivamente para os "megamalls", o consumo de "qualidade" (associado ao lazer e à cultura) busca formas alternativas em lugares que se assemelham aos centros históricos de cidades antigas, hoje tomadas pelo turismo. Na forma de um espelhamento vertiginoso, os novos shoppings imitam os centros urbanos que, por sua vez, já se tornaram imitações de shoppings.
Simulacro em "looping" que revela uma total perda de referente para as formas urbana e arquitetônica, a indicar uma colonização (talvez definitiva) do imaginário pelo universo movente do consumo e da mercadoria.


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