São Paulo, segunda-feira, 04 de dezembro de 2006

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NELSON ASCHER

Carpe diem


Famosa fórmula de Horácio (65 a.C.- 8 a.C.) sintetiza a incerteza do amanhã e a idéia de que o fim é inevitável


TERMOS COMO civilização e barbárie estão fora de moda há algum tempo, nem é costume mais comparar os méritos relativos de civilizações e culturas diferentes. Afinal, se são diferentes, como (e para quê) compará-las?
Dizer que em tal ou qual comunidade organizada de acordo com certas regras, a vida pode ser mais agradável e longa do que em outras equivale a incorrer num pecado que nossos dias não perdoam: o etnocentrismo.
Não é assim que o poeta latino Horácio (65 a.C.- 8 a.C.) via o mundo ao seu redor. Nascido quando sua pátria estava prestes a mergulhar numa prolongada guerra civil, ele aprendeu, na maturidade, a dar o devido valor a coisas como estabilidade, segurança e justiça. Seus conterrâneos recordavam, ademais, que, numa era anterior, um império rival, Cartago, quase destruíra Roma e conheciam as vizinhanças suficientemente bem para saber quão melhor era estar onde estavam do que na terras bárbaras ao norte ou nos reinos despóticos ao leste.
A paz que se instaurou com a chegada de Augusto ao poder e a segurança pessoal que um rico patrono (Mecenas) lhe garantia permitiram ao poeta não só levar sua arte, a da poesia lírica, ao apogeu por meio do transplante para o latim de recursos aprendidos com os mestres gregos, como, numa centena de canções (as "odes"), ocupar-se das principais constantes da existência e da natureza humana, constantes que exprimiu tão elegante e exemplarmente que seus versos continuam sendo lidos, traduzidos e imitados até hoje, dois milênios após morrer.
Se os gregos tiveram boas idéias, a continuidade que chamamos de Ocidente nasceu não com eles, mas quando alguns romanos as adaptaram a seus objetivos, tornando-as perpetuáveis, imitáveis e aptas a serem desenvolvidas. Refazendo em latim o lirismo grego, Horácio se incorporou ao círculo de criadores da tradição à qual pertencemos, a que nos permite olhar para além dos confins de nossa cultura de modo a aproveitarmos, das alheias, quanto nos possa interessar ou ser útil.
As duas odes apresentadas (que retraduzi após publicá-las em meu "Poesia Alheia" de 1998) ilustram a perfeição formal que Horácio era capaz, como ninguém, de atingir.
Se ser cidadão de uma civilização avançada reduzia o risco e o medo da morte violenta e/ou precoce, nem por isso o fim deixava de ser inevitável e a consciência deste, bem como a incerteza acerca do amanhã, são assuntos que, perpassando-lhe a poesia, foram sintetizados na famosa fórmula com que se encerra a 11ª ode de seu primeiro livro: "carpe diem" (aproximadamente: "desfrute o presente"). Outro de seus temas, aquele que implica uma visão realista das relações entre os sexos e cínica do amor, materializa-se no poema sobre uma moça, Pirra, onde, falando de um "affair" terminado, compara-se ao marinheiro que, segundo os costumes de então, pendurara as roupas com as quais sobrevivera a um naufrágio na paredes de um templo de Netuno, deus do mar.

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