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CONTARDO CALLIGARIS
"Apenas um Beijo"
Está em cartaz "Apenas um
Beijo", de Ken Loach.
Resumo: na Escócia, Casim, um
DJ de origem paquistanesa, apaixona-se por uma professora católica, ms. Hanlon, e desafia as tradições de sua família imigrante e
muçulmana.
O filme é a obra mais certeira e
honesta que eu conheça sobre o
conflito dominante de nossa época.
Vistos das Américas, os carros
que os jovens de origem árabe
continuam queimando nas periferias de Paris (425 nesta passagem de ano) podem parecer fogueiras exóticas. Deste lado do
Atlântico, por mais que sejamos
"subdesenvolvidos", somos irremediavelmente modernos: as esperanças (sociais e econômicas)
nos definem mais do que nossa
ascendência. O imigrante americano sacrificou raízes e tradições
em troca do sonho (frustrado ou
não) de uma vida, como se diz,
mais digna.
Claro, é sempre tentador opor o
"cinismo" dos sonhos americanos
(status e dinheiro) à riqueza e ao
calor das comunidades tradicionais. Mas o filme de Loach nos
lembra que a modernidade não é
só um sonho de consumo; a modernidade é, antes de mais nada,
uma história de amor: a paixão
amorosa entre diferentes, distantes e estranhos é o protótipo da livre escolha dos sujeitos contra as
exigências de seu próprio passado.
No filme, ms. Hanlon deve responder à pergunta: "Você vai sacrificar a continuidade da tradição e a incondicionalidade dos
afetos familiares por uma paixão
que pode acabar amanhã?". Ela
não mente, não promete amor
eterno, mas tampouco desiste.
A modernidade é isto: um pulo
no escuro, sem garantias.
Os pais de Casim foram para a
Europa atrás da liberdade de culto, depois da dolorosa separação
religiosa de Índia e Paquistão.
"Detalhe" imprevisto, o que eles
procuravam e encontraram tem
um preço: uma divisão psíquica
(que brota em seus rebentos) entre as tradições da comunidade e
a liberdade subjetiva moderna. O
"viva e deixe viver", cujos benefícios eles desejaram e conseguiram, vinga na cabeça de seus filhos.
"Se queriam que fôssemos
iguais a vocês, por que vieram fazer seus filhos aqui?" A pergunta é
colocada aos pais pela irmã menor de Casim, exasperada pelo
conflito que ela vive entre o amor
filial e a modernidade que a contamina.
Para a segunda geração, a tragédia é a regra: Casim poderia
amar ms. Hanlon na dor e na culpa de quem desobedece ao seu
passado ou, então, ele poderia
queimar carros e jogar bombas,
fomentando seu ódio pela liberdade que o tenta.
Por que esse conflito estoura
agora? Por que ele não explodiu
antes? É que estamos vivendo,
desde os anos 60, a última revolução moderna. A luta entre a liberdade de inventar a vida e as dívidas do passado é tão difícil que
criamos uma arte (ou ciência, que
seja), a psicanálise, só para isto:
para aprender a lidar com os restos do passado.
Nos anos 70, no posfácio de "O
Zen e a Arte da Manutenção da
Motocicleta", Robert Pirsig ainda
escrevia: "Não sei que tipo de futuro se prepara atrás da gente,
mas o passado, desdobrado na
nossa frente, domina tudo o que
podemos enxergar".
Na noite de domingo, depois de
assistir ao filme de Loach, tive um
sonho engraçado, cujo conteúdo
manifesto me ajudou a escrever
esta coluna.
Estava sentado numa mesinha
de bar com Demétrio Magnoli,
que é também colunista da Folha,
às quintas-feiras, na página dois.
Eu tentava explicar ao Demétrio
que o conflito de culturas que assola nossos tempos não é econômico, tampouco é entre Oriente e
Ocidente, mas é o mesmo desde o
século 13, entre a aventura arriscada da liberdade e o conforto
opressivo das tradições.
Como num filme, a câmara recuava e revelava que estávamos
em cima de um promontório rochoso que dominava uma planície onde começava uma grande
batalha, no estilo do enfrentamento final nas "Crônicas de
Nárnia" ou no "Senhor dos
Anéis".
À nossa direita, avançava um
vasto exército de cavaleiros armados. Havia imames, mas também papas, cardeais e figuras de
aspecto mais laico: o presidente
do Irã e pastores evangélicos.
À nossa esquerda, no começo,
não havia ninguém. Logo aparecia um velho barbudo, que caminhava se apoiando num bastão
de peregrino: era Walt Whitman;
atrás dele, vinha um homem mais
jovem, que era Henry David Thoreau. No sonho, pensei que ele estava lá por seu elogio da "Desobediência Civil".
Comecei a me preocupar, pois
me parecia um exército curiosamente rarefeito. Logo, precedido
do barulho redondo do motor,
numa nuvem de poeira, apareceu
o enorme Hudson 49 de "On The
Road", com Kerouac no volante e
Neal Cassidy do seu lado. Já me
senti melhor. Enfim, ultrapassando a todos, surgiu a motocicleta
de Robert Pirsig, com o filho,
Chris, adolescente, na garupa.
Aí senti uma estranha certeza
de que esse exército de Brancaleone, sem armas, apenas louco de
paixão pelo pé na estrada, pela
aventura da vida e pela vontade
de contá-la, ganharia o dia. Acordei de bom humor, pensando,
meio adormecido, que, se os outros entoassem hinos e encantações, certamente a banda do submarino amarelo tocaria para nós.
Cuidado, o filme de Loach pode sair de programação rapidamente.
@ - ccalligari@uol.com.br
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