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CARLOS HEITOR CONY
Auto da determinação do auto
O que falta é habituar o homem à idéia de que ele não é melhor nem pior do que pulgas e siris
FOI À minha frente, na tarde
chuvosa de um sábado, naquela curva esburacada do
morro da Viúva. Vi o auto da autodeterminação do auto, no exato momento em que um auto resolveu se
autodeterminar e, desobedecendo
às mãos que o guiavam, foi espatifar-se na árvore posta em sossego.
Era um Golf novinho, verde, e o
casal vinha no banco da frente, ela ao
volante.
Entrou muito forte na curva, espantou-se com as crateras do chão,
tentou desviar, mas o asfalto molhado estava ali para isso mesmo, o carro andou de lado e acabou indo parar
na calçada.
Não vou plagiar o inspirado rei
Denís e cometer um auto no estilo
de sua ensinança do bom "caualcar"
toda cela. Assim, não pretendo ensinar a ninguém como evitar derrapagens no morro da Viúva.
Volta e meia, pelo asfalto desta cidade, também passo meus momentos de aflição, nada posso fazer por
mim e ninguém pode fazer nada por
mim.
Mas a derrapagem do Golf à minha frente encheu-me a tarde e a
noite seguinte de amplas e cavilosas
meditações sobre a autodeterminação das coisas.
Basta uma poça de óleo e todo o
sistema de segurança de um carro
ou de um homem pode espatifar-se
na calçada ou no imponderável. Às
vezes, nem é necessária a poça de
óleo.
E fico alarmado com a tíbia segurança de nossas vidas, de nossas cidades, de nossas crianças, de nossas
esperanças, de nossos futuros, de
nossos vasos sangüíneos. Um alfinete pode romper tudo. Um botão
apertado em Washington ou em
Moscou tem o poder de acabar com
tudo também.
E, deixando o rei Denís de lado,
penso no alfinete e no botão. Poderia abandonar a idéia do auto e fazer
um apólogo à maneira do Machado,
como o da agulha e da linha.
Mas tudo já foi feito e a única coisa
que falta realmente fazer é habituar
o homem à idéia de que ele, homem,
não é melhor nem pior do que uma
pulga ou um siri.
Na cúpula da basílica de São Pedro, há uma frase em latim na qual
está inscrita qualquer coisa importante ou imponente. Se um dia eu
puder interferir na vida dos povos e
vier a dominar o mundo, mandarei
raspar a frase existente e escreverei
outra: "O homem é igual a um siri e
não é diferente de uma pulga". (A hipótese não é para alarmar: felizmente para todos e para mim, não dominarei o mundo).
O que estragou o homem foi o preconceito segundo o qual, ele, homem, é o rei da criação. Rei de araque, de uma criação igualmente de
araque.
Para justificar esse reinado (era
muito importante para o homem ser
superior às pulgas e aos siris), foram
criados diversos sistemas de governo e de pensamento. Socialismo,
cristianismo, humanismo -tudo isso gastou tinta e amolou (na verdade, ainda amola) a infância humana
nas escolas.
Enquanto os filhos dos siris e das
pulgas enfrentam a vida da maneira
como ela deve ser enfrentada ("sub
specie" de pulga e de siri), nossas
crianças perdem seu tempo e muito
de suas energias aprendendo pronomes oblíquos, verbos depoentes e
nomes dos afluentes do Ródano, do
Nilo ou do rio Papa Couves em território doméstico.
Bom, não fiz o auto, tampouco farei o apólogo. Mas, para ao menos
encerrar esta descosida crônica, cabe uma explicação: desde o dia em
que nasci, estou à espera de qualquer coisa importante.
Até mesmo um fim de mundo, espetáculo a que não assistirei mas no
qual gostaria de estar presente para
ver como iria ser, como os outros se
comportariam e o que diriam os jornais no dia seguinte.
O que me sobra é assistir ao meu
próprio fim, mais modesto e menos
espetacular, não sendo nada de importante nem mesmo para mim,
pois nada será importante depois do
fim de cada um de nós.
Daí, tudo isso me deixa à vontade
para não seguir idéia alguma e cruzar os braços diante da imagem do
Golf derrapado.
Um homem ia de Samaria a Jericó
e foi assaltado por ladrões. Passou
outro homem pela mesma estrada e
pensou: "Ora, um galileu assaltado
na estrada não merece nada". Passaram outro e mais outros viajantes,
até que passou um samaritano. Socorreu o necessitado e ficou sendo o
"bom samaritano".
Não sou samaritano nem bom.
Sou um homem que, justamente por
não ser melhor nem pior do que
uma sardinha ou um hipopótamo,
quer viver e morrer em liberdade e
com direito de chorar na hora da dor
e de gritar na hora do grito.
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