São Paulo, sexta-feira, 05 de janeiro de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Auto da determinação do auto

O que falta é habituar o homem à idéia de que ele não é melhor nem pior do que pulgas e siris

FOI À minha frente, na tarde chuvosa de um sábado, naquela curva esburacada do morro da Viúva. Vi o auto da autodeterminação do auto, no exato momento em que um auto resolveu se autodeterminar e, desobedecendo às mãos que o guiavam, foi espatifar-se na árvore posta em sossego.
Era um Golf novinho, verde, e o casal vinha no banco da frente, ela ao volante.
Entrou muito forte na curva, espantou-se com as crateras do chão, tentou desviar, mas o asfalto molhado estava ali para isso mesmo, o carro andou de lado e acabou indo parar na calçada.
Não vou plagiar o inspirado rei Denís e cometer um auto no estilo de sua ensinança do bom "caualcar" toda cela. Assim, não pretendo ensinar a ninguém como evitar derrapagens no morro da Viúva.
Volta e meia, pelo asfalto desta cidade, também passo meus momentos de aflição, nada posso fazer por mim e ninguém pode fazer nada por mim.
Mas a derrapagem do Golf à minha frente encheu-me a tarde e a noite seguinte de amplas e cavilosas meditações sobre a autodeterminação das coisas.
Basta uma poça de óleo e todo o sistema de segurança de um carro ou de um homem pode espatifar-se na calçada ou no imponderável. Às vezes, nem é necessária a poça de óleo.
E fico alarmado com a tíbia segurança de nossas vidas, de nossas cidades, de nossas crianças, de nossas esperanças, de nossos futuros, de nossos vasos sangüíneos. Um alfinete pode romper tudo. Um botão apertado em Washington ou em Moscou tem o poder de acabar com tudo também.
E, deixando o rei Denís de lado, penso no alfinete e no botão. Poderia abandonar a idéia do auto e fazer um apólogo à maneira do Machado, como o da agulha e da linha.
Mas tudo já foi feito e a única coisa que falta realmente fazer é habituar o homem à idéia de que ele, homem, não é melhor nem pior do que uma pulga ou um siri.
Na cúpula da basílica de São Pedro, há uma frase em latim na qual está inscrita qualquer coisa importante ou imponente. Se um dia eu puder interferir na vida dos povos e vier a dominar o mundo, mandarei raspar a frase existente e escreverei outra: "O homem é igual a um siri e não é diferente de uma pulga". (A hipótese não é para alarmar: felizmente para todos e para mim, não dominarei o mundo).
O que estragou o homem foi o preconceito segundo o qual, ele, homem, é o rei da criação. Rei de araque, de uma criação igualmente de araque.
Para justificar esse reinado (era muito importante para o homem ser superior às pulgas e aos siris), foram criados diversos sistemas de governo e de pensamento. Socialismo, cristianismo, humanismo -tudo isso gastou tinta e amolou (na verdade, ainda amola) a infância humana nas escolas.
Enquanto os filhos dos siris e das pulgas enfrentam a vida da maneira como ela deve ser enfrentada ("sub specie" de pulga e de siri), nossas crianças perdem seu tempo e muito de suas energias aprendendo pronomes oblíquos, verbos depoentes e nomes dos afluentes do Ródano, do Nilo ou do rio Papa Couves em território doméstico.
Bom, não fiz o auto, tampouco farei o apólogo. Mas, para ao menos encerrar esta descosida crônica, cabe uma explicação: desde o dia em que nasci, estou à espera de qualquer coisa importante.
Até mesmo um fim de mundo, espetáculo a que não assistirei mas no qual gostaria de estar presente para ver como iria ser, como os outros se comportariam e o que diriam os jornais no dia seguinte.
O que me sobra é assistir ao meu próprio fim, mais modesto e menos espetacular, não sendo nada de importante nem mesmo para mim, pois nada será importante depois do fim de cada um de nós.
Daí, tudo isso me deixa à vontade para não seguir idéia alguma e cruzar os braços diante da imagem do Golf derrapado.
Um homem ia de Samaria a Jericó e foi assaltado por ladrões. Passou outro homem pela mesma estrada e pensou: "Ora, um galileu assaltado na estrada não merece nada". Passaram outro e mais outros viajantes, até que passou um samaritano. Socorreu o necessitado e ficou sendo o "bom samaritano".
Não sou samaritano nem bom. Sou um homem que, justamente por não ser melhor nem pior do que uma sardinha ou um hipopótamo, quer viver e morrer em liberdade e com direito de chorar na hora da dor e de gritar na hora do grito.


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