São Paulo, segunda-feira, 05 de janeiro de 2009

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"O surrealismo me atrai por sua liberdade plena"

Fernando Lemos, 82, ganha exposições e lançamentos de livros sobre a sua obra

MARIO GIOIA
DA REPORTAGEM LOCAL

A liberdade e a experimentação (ou a falta delas) parecem ser indissociáveis da trajetória artística de Fernando Lemos, 82. Filho de pai operário e de mãe rendeira, o hoje celebrado fotógrafo, artista plástico e designer nasceu em maio de 1926 no popular bairro lisboeta de Campo de Ourique, justamente quando o regime salazarista surgia em Portugal.
"Por coincidência, nasci quando essa peste teve início", afirma ele, que conversou com a Folha em seu amplo ateliê no Butantã, em São Paulo.
Nos últimos anos, a produção surrealista de Lemos vem conquistando mais reconhecimento além das fronteiras lusófonas. No ano passado, ganhou mostra com sua produção dos anos 40 e 50 na Photobiennale 2008, em Moscou.
Entre o final deste ano e o começo de 2010, outra exposição com seus registros surrealistas inaugura um novo museu de fotografia em Tenerife, nas Ilhas Canárias.
Portugal também receberá nova reunião de suas fotos, no Museu da Eletricidade, em Lisboa, também entre o final de 2009 e o começo do ano que vem. A Pinacoteca do Estado deve montar a mesma mostra.
No Brasil, estão previstos lançamentos de livros sobre a obra do artista. De autoria da curadora e pesquisadora Rosely Nakagawa, o Centro Cultural São Paulo deve lançar neste ano edição bilingue (em português e inglês) que compilará a produção fotográfica de Lemos. A Cosac Naify também pretende fazer novas edições de obras infanto-juvenis da editora Giroflé, criada em 1963 por Lemos e alguns parceiros. Na época, os livros marcaram época por sua originalidade gráfica e por seu direcionamento exclusivo para crianças e adolescentes (leia ao lado).
"O surrealismo me atrai por seu sentido de liberdade plena. Assumimos tudo o que há de riqueza no sonho. E, quando você nasce dentro de uma ditadura, você começa a ver na liberdade uma coisa mais que divina. Foi só depois que percebi que não precisamos lutar para ser livres, nós nascemos livres", diz Lemos, que fugiu da repressão salazarista em 1953 ao viajar para o Brasil, morando inicialmente no Rio e depois em São Paulo, onde trabalhou na organização dos festejos do Quarto Centenário da cidade.
"Essa liberdade do surrealismo deu à minha obra o que hoje se chama de multimídia. Escrevo como se fizesse fotografia, faço fotografia como se pintasse, pinto como se estivesse fazendo desenho", diz Lemos. "As pessoas têm dificuldade de me encaixar em algo, não sabem onde me colocar."
Essa multiplicidade de linguagens aparece já no começo da trajetória de Lemos. Aluno dos cursos livres da Sociedade de Belas Artes de Lisboa desde sua adolescência, onde se destacou fazendo desenhos, o artista vai dar seus primeiros passos no surrealismo por meio de suas pinturas, como "Berlengas", de 1948, tela de sua coleção pessoal que deve ser vendida para um novo museu português, que será dedicado exclusivamente ao movimento.

Escândalo
Em 1949, Lemos começou a realizar seus experimentos em fotografia, que culminariam numa ruidosa mostra na Casa Jalco, luxuosa loja de móveis no bairro lisboeta do Chiado, em 1952, com trabalhos dele, de Fernando Azevedo e de Marcelino Vespeira.
"Foi um escândalo. As pessoas não estavam preparadas para aquilo. Era uma loja de móveis de um sujeito que caiu na esparrela de emprestar a casa para a gente. Entrou numa fria danada, porque os fregueses ficaram telefonando para ele reclamando da mostra."
As imagens, com poses pouco usuais e sobreposições de retratos de intelectuais amigos de Lemos, como os escritores Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner, dos pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, entre outros, foram marco da modernidade fotográfica portuguesa, tendo sua importância revista após a Revolução dos Cravos, em 1974.
"A oposição era toda relacionada entre si. Toda essa gente era contra o governo, ela não podia dar aula, não podia publicar, não podia trabalhar. Os retratos que fiz tornaram-se uma galeria de figuras importantes, que, àquela altura, não podiam fazer nada", conta. "Não era só arte, era uma luta antifascista, antisalazarista, isso custou a vida de muitos. Teve gente que ficou presa 30 anos."

Brasil
Apesar da união entre os círculos intelectuais lisboetas, Lemos não suportou a falta de liberdade e partiu para o Brasil em 1953, radicando-se no Rio, onde trabalhou como ilustrador e designer. Na então capital do país, fez amizade com nomes importantes da cultura, como Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes.
No ano seguinte, mudou-se para São Paulo, onde tornou-se amigo de artistas do movimento construtivo, como Willys de Castro e Hércules Barsotti. Na cidade, também conheceu a produção experimental e com toques surrealistas, realizada por nomes como Thomaz Farkas e Geraldo de Barros.
"Foram experimentos feitos na mesma época, paralelamente, de 1947 a 1952, dos dois lados do oceano. Tenho um afeto muito grande pelo Farkas, pelo Geraldo e pelo German Lorca", diz Lemos.



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