São Paulo, quarta-feira, 05 de janeiro de 2011

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MARCELO COELHO

Sai de baixo


Só sei que, quando chovem automóveis, vale proteger a cabeça, e desconfiar das previsões de tempo


NO COMEÇO, tudo parece uma chuva de jujubas ou pétalas de plástico. Mas o significado do anúncio se esclarece logo em seguida: o que cai do céu são automóveis zero quilômetro.
A trilha sonora não dá ideia do baque, mas imagina-se bem o que seriam as ruas de uma cidade se carros como aqueles despencassem sem aviso da estratosfera.
Nenhuma menção à ecologia ou à aventura nessa peça comercial. Fantasias de um rally africano, ou de um mundo em que flores nascessem de escapamentos, não parecem convir ao "público alvo" do anúncio.
A delicadeza do início -origamis transparentes pairando sobre a paisagem cinza- dá lugar ao peso da vendagem pura, quase assassina, desses meteoritos da felicidade popular.
Não sei se o anúncio foi feito no Brasil, mas parece corresponder bem à época que vivemos por aqui. Índices "robustos" de consumo, taxas "sólidas" de investimento, o estilo "firme" de Dilma e sua chegada ao Planalto parecem de fato trazer certa glorificação do pesado, do que baixou lá de cima.
Dizendo melhor, e sem tomar tudo num sentido negativo, o espírito do momento bem que poderia ser resumido pelo lema "sai de baixo".
Sair de baixo, afinal, é o que muitos milhões de brasileiros conseguiram nesses anos, e isso não foi invenção da mídia, nem criação do PT, nem mérito apenas de Lula ou deles mesmos, nem simplesmente efeito retardado (e ponha-se retardado nisso) dos anos FHC.
Foi tudo ao mesmo tempo, se quisermos; na verdade o debate se encontra tão partidarizado a esse respeito que fico quieto. Não sei. Qualquer coisa que escreva, cairá em cima do autor uma tonelada de chumbo. Bastam-me os automóveis.
Não é a primeira vez que o dólar baixo produz uma chuva de bens de consumo maior, mais torrencial, do que a do anúncio. Brinquedos chineses, desde o primeiro ciclo de consumo com o governo FHC (era a "farra dos importados" na época) sempre me parecem o símbolo dessa inutilidade: não duram mais do que uma semana.
Outro dia comprei um guarda-chuva numa banca de jornais. Acho até ótimo que seja coisa descartável, porque guarda-chuva a gente esquece mesmo. Paguei dez reais, o que não é caro. Mas foi só abri-lo que uma lingueta ou trava de metal caiu na minha mão. Chovem guarda-chuvas desse tipo, além de carros, em cada esquina paulistana -e dos próprios guarda-chuvas chovem pecinhas e varetas, competindo com os pingos desta época do ano.
Falei do guarda-chuva, mas o próprio carro que comprei recentemente se despedaça pelo asfalto. Foi há alguns anos, aí por janeiro também. Sei que havia um imposto que tinham tirado e iam colocar de novo, e a ordem geral aos agentes econômicos, como é fácil perceber, foi: "corram às concessionárias".
O vendedor se abanava: "nunca vendemos tanto". Aparentemente, as montadoras trabalhavam a pleno vapor -e com um pouco de cuspe para ajudar, pois em questão de poucos dias meu para-choque despencava, partes do painel se desajustavam, e até o pino da trava da porta, que deve ter sido feito no mesmo lugar em que fazem os ganchinhos de guarda-chuva, estava solto.
Era tudo de plástico, aliás. Nunca entendi um para-choque de plástico. Seria mais barato fazê-los de papelão de uma vez. Poluiríamos menos o ambiente, se tanta lixarada fosse ao menos degradável.
A passagem do brinquedinho chinês para o brinquedão automotivo (pelo menos não é importado, acho) foi o que o anúncio tratou de resumir. Tudo, de uma hora para outra, ou melhor, nos últimos 16, oito ou quatro anos, começou a chover de uma cornucópia imaginária sobre os rincões de pátria.
Com direito a guarda-chuvas nada feios, oferecidos pelos camelôs de cada esquina para quem não se acostumou ainda com as coisas. Há ainda o perigo, comum nesta época do ano, dos alagamentos.
Se também nesse caso tudo "sobe de nível", uma moderna Maria Antonieta poderá dizer: mas por que reclamam de tanta água, se é hora de embarcar nos navios de cruzeiro?
Quanto a mim, não reclamo nem embarco. Só sei que, quando chovem automóveis, vale proteger a cabeça, e desconfiar das previsões de tempo. Tendem bastante para o otimismo em 2011 -o que, a meu ver, nunca é bom sinal.
coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris



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