|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARQUITETURA
Após livro e sala na Bienal de SP, que acaba amanhã, João Filgueiras Lima será visto em Venez a
Mesmo sem querer, Lelé sai do casulo
Ana Ottoni
|
O arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, fotografado no hospital Sara Kubitschek de Salvador, um de seus projetos mais recentes |
MARA GAMA
enviada especial a Salvador
Um livro dedicado à sua obra e
o espaço especial na Bienal Internacional de Arquitetura (que termina amanhã), em São Paulo, já
tinham causado uma repercussão
que surpreendeu o arquiteto carioca João Filgueiras Lima, o Lelé,
em 1999. Ele não gosta de bajulação e salamaleques. "Prefiro ficar
no meu casulo", diz.
Agora, vai ter de sair do casulo
de novo, para a Bienal de Veneza,
onde estará junto com o arquiteto
Paulo Mendes da Rocha, o outro
brasileiro indicado para a mostra,
no segundo semestre deste ano.
Lelé, 67, traçou um caminho
particular na arquitetura. Convidado por Niemeyer, foi para Brasília no início da sua construção.
Aprendia muito do que tinha de
ser feito no canteiro de obras. Tudo tinha de ser feito rápido, em
escala industrial. Gostou.
Passou a usar argamassa armada -mistura de concreto com
menos ferro que o ferrocimento,
material desenvolvido pelo arquiteto romano Nervi- em todas as
suas obras. "Mais barata".
Na década de 70, fez vários projetos de urbanização em Salvador.
Passarelas coloridas e suspensas,
bancos de rua, abrigos de ônibus e
vários prédios administrativos
têm sua marca.
Participou da Fábrica de Cidades, oficialmente Fábrica da
Companhia de Renovação Urbana de Salvador, que já funcionava
como um canteiro de obras permanente, produzindo as peças
que seriam usadas nos projetos
da cidade. Fez projetos no Rio,
entre os quais o dos Ciacs, do governo Brizola. Se arrepende.
Em 1980, inaugurou o primeiro
hospital da rede Sarah Kubitschek, em Brasília, centro de referência no tratamento do aparelho
locomotor. De lá para cá, tem trabalhado na expansão da rede, que
já está em 8 capitais, fazendo hospitais com grande uso de ventilação e iluminação naturais, jardins
internos e espaço muito superior
ao comum para cada doente.
Dirige uma fábrica, que produz
plásticos, ventiladores, camas,
macas, mesas, além de peças de
variados tamanhos e formatos em
argamassa armada e perfis metálicos. Usa tudo o que produz nos
prédios que desenha para uma rede Sarah Kubitschek. Tem cerca
de 600 funcionários sob seu comando, em Brasília e em Salvador, e uma equipe de projeto de
50 técnicos.
Leia, a seguir, a entrevista concedida por ele no Centro Tecnológico da Rede Sarah Kubitschek
(CTRS), em Salvador, a fábrica
onde Lelé cria as peças que monta
em seus projetos.
Folha - Participação na Bienal
de Veneza, livro sobre sua obra,
espaço de destaque na Bienal
Internacional de Arquitetura de
São Paulo. O Brasil descobriu o
arquiteto Lelé?
Lelé - De repente virei alvo, virei
notícia. Não estava preparado. A
gente tem de aceitar as críticas,
mas os elogios quase sempre atrapalham. Prefiro ficar no meu casulo. Sempre fugi disso porque
acho que afeta o trabalho.
Folha - Como será a exposição
em Veneza?
Lelé - Destacamos os trabalhos
mais recentes, da Rede Sarah. Vamos fazer novas maquetes, para
detalhar aspectos construtivos.
Folha - Os hospitais da rede
Sarah são mais baratos que os
convencionais?
Lelé - Eles são pensados de uma
forma diferente. Os hospitais, para ter o nível que os nossos têm,
são, em geral, herméticos, com ar
condicionado em todos os compartimentos, coisa que não adotamos. Nisso, o nosso hospital é
mais barato. Ele é mais caro se você pensar que tem espaços maiores. É difícil comparar. O Sarah de
Salvador, equipado, custou US$
36 milhões. É difícil fazer um hospital de 200 leitos com esse preço.
Também temos como vantagem
que equipamentos e manutenção
são feitos pelo CTRS. Mesas, equipamentos de ortopedia, esquadrias, quase tudo.
Folha - Como são exatamente
os sistemas de ventilação dos
hospitais?
Lelé - O princípio é o seguinte: o
conforto, em climas quentes, é
você ter ar circulando. Quando a
brisa entra em contato com sua
pele e você está transpirando um
pouquinho, a evaporação produz
um rebaixamento de temperatura. Mas não pode ter vento. Só
ventilação. Se, além de ventilar esse ar, você, antes de introduzi-lo
num ambiente, pulverizar água,
ele já entra mais frio. Esse é o controle térmico. O aspecto mais importante para os hospitais, no entanto, é o controle biológico do ar.
Se você introduz ar "novo", terá
bactérias novas e não agressivas.
A ventilação natural é mais prática e barata.
Folha - Algumas das características de seus projetos acabaram gerando formas que identificam sua autoria. A prática gerou um estilo?
Lelé - Não chega a ser um estilo.
Tudo que eu aplico todo arquiteto
sabe. A questão básica é saber
porque os outros não aplicam.
Não estou criando nada de diferente do que o que a gente aprende na escola. Por exemplo, os
sheds de iluminação. É lógico. Vivemos num pais tropical. Se a
gente pode estar num ambiente
sem iluminação artificial, porque
não aproveitar isso? É mais agradável e barato. Qualquer um pode
fazer.
Folha - Mas, no seu caso, essa
preocupação se repete e toma
forma.
Lelé - É uma preocupação racionalista. Não é criatividade espontânea. Por que você tem de ficar numa terapia intensiva, cheio
de equipamentos e sem contato
com o verde e com a luz do dia?
Por que devemos transformar esses ambientes em que as pessoas
já estão fragilizadas em lugares
para ter contato com esses monstrengos tecnológicos que só oprimem? Essa mudança de conceito
é um lado humanista que todo
mundo tem de ter.
Folha - Mas vendo em retrospecto sua obra, a horizontalidade, os sistemas de captação de
ar e a iluminação foram sendo
resolvidos de uma maneira formal que é sua.
Lelé - É decorrente da prática. É
diferente de um Oscar, por exemplo. Tudo nele é criativo. Eu não
sou assim, eu não tenho essa chama. Vou fazendo passo a passo.
Sou uma pessoa normal. Repito
algumas estruturas sem me incomodar. Os arquitetos têm vergonha de repetir. Eu não tenho.
Folha - No livro, há um trecho
em que o sr. diz que é um "subproduto" de Niemeyer e Lúcio
Costa. Qual a sua contribuição
para a arquitetura?
Lelé - Não acho que eu tenha. O
Oscar é um criador fantástico. O
dr. Lúcio mudou a arquitetura do
Brasil, o ensino e tudo mais. O que
eu fiz? Eu tive a oportunidade de
trabalho de atuar na industrialização e talvez com alguma qualidade. Com isso, consegui fazer um
trabalho um pouco diferente do
comum que se faz.
Folha - Poder fazer um canteiro de obras permanente, como
o CTRS, e fazer exatamente as
peças necessárias para a construção é um privilégio?
Lelé - É. Se eu tenho algum mérito foi ter conseguido os recursos
para isso.
Folha - O sr. acompanha o processo inteiro e interfere nele.
Quando foram criados esses
centros?
Lelé - O de Brasília foi criado em
1976 e o de Salvador em 1992. Mas
o pior é que depois de construído
eu continuo a acompanhar.
Folha - Pior?
Lelé - Le Corbusier, que era
muito engraçado, dizia: você tem
de fazer um projeto, fotografar a
obra e nunca mais aparecer, ignorar.
Folha - Lúcio Costa seguiu o
conselho com Brasília?
Lelé - Pode ser. E isso é o oposto
do que eu faço. Fico vendo ao lado, sofrendo, refazendo. Corbusier dizia para nunca mais aparecer. Daí, uma ocasião, num convento que ele tinha feito houve
um problema de vazamento.
Chovia dentro. Ele dizia: Ah,
compra um guarda-chuva! (risos)
Ele não queria nem saber. Para
você ver até que ponto ele levava
isso.
Folha - E a experiência dos
Ciacs?
Lelé - Fracasso. Considero todas essas experiências fracassadas. Tenho um arrependimento
enorme de ter participado. Eu devia ter percebido que não ia dar
certo hoje nem consigo reconhecer meus projetos. De vez em
quando, em viagem, vejo um. Viro pro outro lado. É claro que me
sinto culpado de ter feito uma coisa que deu tão errado.
Texto Anterior: Antes do vestido, não existia o amor Próximo Texto: De Lelé para Darcy Índice
|