São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004

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LITERATURA

Escritora atingiu um grau sofisticadíssimo de percepção Discurso de Hilda é o de louco refinado

Discurso de Hilda é o de louco refinado

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

A poeta Hilda Hilst não ficou uma década que fosse sem receber algum dos prêmios literários disponíveis no país. Ganhou todos eles, assim como colecionou dezenas de elogios da crítica daqui e também da França, onde foi publicada nos anos 90.
Apesar dos aplausos dos especialistas, a escritora nunca gozou de muita penetração pública. E ressentia-se dessa relativa obscuridade. Deve ter pensado, com acerto, de que vale o autor, ou sua obra, sem essa outra ponta do triângulo que faz mover o fenômeno artístico: o público?
Talvez por isso tenha lançado sua trilogia dita obscena, composta de "Caderno Rosa de Lori Lamby", "Contos de Escárnio & Textos Grotescos" e "Cartas de um Sedutor". Se a literatura supostamente séria não vendia, ou seja, não atingia um público, será que este último não seria espicaçado pela literatura supostamente pornográfica? Quem leu alguma das três partes da trilogia sabe que tudo não passou de uma refinada estratégia de chamar um público a si. Hilda espertamente desconversava. A um estudante de artes cênicas, que foi cumprimentá-la por um dos livros da trilogia, ela retrucou: "Você sentiu tesão? Se não sentiu, não valeu nada".
Hilda queria atingir o leitor em todos os níveis: intelectual, sensorial e, por que não?, sexual. Uma marca comum a todos os seus textos, independentemente de seu estado de fragmentação, estranheza e irreverência, está na sua peculiar comunicabilidade.
Embora a autora tenha se preocupado em expressar uma experiência, esta não se dava a partir de um dado exterior, mas de um percurso interno (daí os constantes fluxos de consciência). Nessa viagem pelos meandros do ser, ela não poupava nada nem ninguém. Noções místicas se misturavam a vulgares considerações corporais.
Assemelha-se a um discurso de um louco, mas louco no sentido de quem atingiu um grau sofisticadíssimo de percepção, que precisa ser comunicado de um modo igualmente complexo. Difícil, por vezes, de ser compreendido.
Somem-se a isso as referências filosóficas, literárias, mitológicas e religiosas que encontramos, de maneira velada ou não, em seus textos. Elas aliam-se a esse fluxo desvairado de consciência e às constantes quebras de narrativa, em que, ocasionalmente, são inseridos trechos poéticos ou diálogos dramáticos, à feição de uma peça de teatro.
É no refletido afã de expressar tudo, de todas as formas, que precisamos entender a estranha comunicabilidade dos textos de Hilda. E se o público se afasta da ficção "séria" e de seus livros de poesia, por que não estimulá-lo pela via do sexo? Afinal, trata-se apenas de outra faceta do humano, do demasiado humano, que a autora pretendeu descrever-nos.
Tendo vivido poucos anos dos 2000, Hilda foi um dos mais extraordinários e originais escritores da segunda metade do século passado. Há apenas uma como ela, embora de todo diferente no jeito de ser e de escrever: Zulmira Ribeiro Tavares. Que o Brasil não se esqueça desses grandes autores do sexo feminino. Mesmo que não vendam muito e não estejam sempre no inconstante circuito dos holofotes da mídia.

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