São Paulo, terça-feira, 05 de fevereiro de 2008

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Mamet satiriza gestão Bush em sua nova peça

"November" tem como protagonista presidente interpretado por Nathan Lane

Ironia do personagem vem do contraste entre o espírito de estadista que gostaria de ter e as ações de político ligado só às circunstâncias

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA, EM NOVA YORK

Às vésperas das eleições, o cenário não é dos mais favoráveis para o presidente norte-americano Charles H. P. Smith, que encerra o primeiro mandato. Seus índices de popularidade são baixíssimos, falta dinheiro para pagar anúncios de TV e nem os seguranças da Casa Branca o levam a sério.
Humilhação suprema: se perder a reeleição e voltar para casa, não conseguiu levantar sequer os recursos necessários para construir, a exemplo de todos os ex-presidentes, uma biblioteca com seu nome para abrigar os documentos da gestão. Apesar disso, ele ainda não entregou os pontos - ao menos até encontrar uma forma hon-rosa de fazê-lo.
Smith é o genérico de presidente dos EUA criado pelo dramaturgo, roteirista, diretor e produtor de cinema e TV David Mamet em "November", sua primeira peça teatral desde "Romance" (2005) e seu retorno mordaz ao ambiente do longa "Mera Coincidência" (1997), os bastidores da Casa Branca.
Desta vez, no entanto, toda a ação se concentra no Salão Oval da Presidência - restrição espacial que Mamet havia adotado, com ótimos resultados, em peças como "American Buffalo" e "Oleanna", já adaptadas para o cinema. E o protagonista, que o público acompanha em três momentos de crise em um período de 24 horas, é mesmo o presidente, e não seus assessores.
"November" entrou em cartaz na segunda quinzena de janeiro em uma das salas mais tradicionais da Broadway, o Ethel Barrymore Theatre, que completará 90 anos em dezembro. Mas é um corpo estranho na vizinhança, ocupada sobretudo por musicais voltados para a diversão sem compromisso com a reflexão política.
A estréia coincidiu com o acirramento das eleições primárias nos EUA, que vivem hoje a "superterça" e a conseqüente intensificação do debate a partir da condenação de Bush e do uso da palavra-chave "mudança" na campanha.
"Fiquei chocado, depois das primárias em Iowa, ao me pegar pensando: "Bem, se forem esses os dois candidatos, (John) McCain e (Barack) Obama, qualquer um deles provavelmente seria um ótimo presidente'", disse Mamet em entrevista à revista "New York".
Embora garantisse que votaria hoje nas primárias da Califórnia, onde mora, ele se recusou a dizer em quem. "Não sou um sujeito de falar sobre política. Sou um escritor de humor", afirmou. "November" não deixa a menor dúvida, com seu habitual ritmo intenso de diálogos evitando que se passe um mísero minuto sem risos.
Além de Mamet, o grande responsável por isso é Nathan Lane ("The Producers"), um dos maiores astros da Broadway, que representa Smith sem apelar ao humor de chanchada. Não é um presidente ridículo, mas patético, cuja ironia vem do contraste entre o espírito de estadista que gostaria de ter e as ações de político provinciano ligado às circunstâncias.
Dois valorosos personagens contribuem para lavar a roupa suja de sua gestão e realçar a pequenez de sua herança: um assessor especial (Dylan Baker), lúcido e pragmático, e a principal redatora de seus discursos (Laurie Metcalf), que adotou uma criança chinesa e quer a todo custo que o presidente celebre seu casamento - com outra mulher.
A certa altura, ao proteger Smith de uma agressão, ela se explica: "Fiz isso em nome de todos os que votaram no senhor". O presidente retruca, como quem se desculpa: "Eles não sabiam o que faziam". Na liberal Nova York, a lembrança a George W. Bush só provoca gargalhadas sem culpa.

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