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JOÃO PEREIRA COUTINHO
A arte de bem degolar
Gênios? Existem. Mas não na quantidade
que o analfabetismo cultural apregoa
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AS PESSOAS usam e abusam da
palavra gênio. Alguém escreve, pinta ou filma com relativa
competência e as massas críticas irrompem em delírio, proclamando
genialidade com assustadora ligeireza. Como se chegou a este triste
estádio, em que os gênios se multiplicam com a rapidez própria dos
coelhos?
Ideologicamente, claro. A idéia de
"gênio", uma herança dos românticos à humanidade, implica uma desigualdade que o pensamento igualitarista não tolera. O gênio é naturalmente superior: ele não depende
das condições materiais do seu tempo para criar; ele situa-se muito acima do seu tempo, falando aos contemporâneos com um sentido de
eternidade que suplanta os contemporâneos. Basta ouvir Mozart ou ler
Flaubert para perceber que nenhuma política "social" será capaz de resolver o intransponível abismo entre "nós" e "eles".
E se o abismo é intransponível, a
melhor forma de acabar com ele
passa pela democratização da palavra "gênio". Todos somos gênios, o
que implica que ninguém é. O ato
tem efeitos perversos: ao declarar
qualquer um como gênio, acabamos
por ignorar os verdadeiros. Que são,
como sempre foram, raros.
Quem, hoje, merece verdadeiramente o título? Gostaria de arriscar
um nome: Sondheim. É provável
que os leitores desconheçam o personagem: na orgia do lixo cultural,
Sondheim não tem a fama de uma
Britney Spears.
Mas olhando para a história musical dos últimos cinqüenta anos, Sondheim não tem par e não tem rival. A
frase talvez soe a heresia, sobretudo
quando o "songbook" americano
apresenta Gershwin, Porter ou Berlin. Sondheim soube receber a herança de todos eles, sobretudo como
discípulo de Hammerstein. Mas
Sondheim, respeitando a herança,
melhorou-a e, como qualquer gênio,
subverteu-a. E não apenas como
compositor. As letras de Sondheim
criaram um mundo como a Broadway nunca viu: um mundo adulto,
capaz de lidar com os grandes temas
da condição humana sem o sentimentalismo doce dos mestres anteriores. Quando assistimos a "Company" (um musical sobre a complexidade das relações amorosas) ou a
"Sweeney Todd: The Demon Barber
of Fleet Street" (um ensaio sobre a
natureza da vingança), estamos em
território novo e esmagador.
E se falei em "Sweeney Todd" foi
de propósito: Tim Burton, depois da
permissão de Sondheim, resolveu
passar para filme o musical de 1979.
Chamou Johnny Depp e Helena Bonham Carter para os papéis originais de Len Cariou e Angela Lansbury. E, com o talento visual conhecido, recriou aos nossos olhos a Londres vitoriana e pestífera onde se desenrola a ação.
E então encontramos Benjamin
Barker, barbeiro em Fleet Street e
vítima da cobiça de um juiz, que o
condena ao degredo para lhe roubar
a mulher e a filha. Quinze anos depois, Barker regressa a Londres para
se vingar do juiz. Mas não apenas do
juiz. Ao saber que a mulher optara
pelo veneno e a filha é prisioneira do
seu algoz, a vingança de Sweeney
Todd, nome de guerra, será executada sobre toda a humanidade. E executada a golpes de navalha. Como
cúmplice, Todd terá a ajuda de Mrs.
Lovett, antiga senhoria que nutre
por Barker, ou por Todd, uma paixão platônica.
Eles são, à sua maneira, o par perfeito: enquanto Todd degola, Mrs.
Lovett cozinha tartes com o recheio
que vocês imaginam. Exatamente
como no "Titus Andronicus" de
Shakespeare, outro tratado amoral
sobre a vingança humana.
Falei de Shakespeare? Precisamente. "Sweeney Todd" é de uma
violência extrema. Mas é também
de uma tristeza extrema: porque
não existe destruição radical sem
autodestruição radical. E o que comove em "Sweeney Todd" é contemplar um homem que, para retomar as palavras do bardo, é incapaz
de sentir em si as "compungidas visitas da natureza" de que falava Lady
Macbeth no mais terrível monólogo
da literatura. E uma seqüência do
musical de Sondheim (e do filme de
Burton) ilustra essa desumanidade
com assombrosa beleza: quando
Todd, admirando as navalhas com
que irá cometer os seus crimes, ergue um monumento musical e insano à vingança; e Mrs. Lovett, ao ouvido, sussurra-lhe palavras compassivas e apaixonadas sobre um futuro
que eles jamais terão.
Gênios? Eles existem. Mas não
existem na quantidade absurda que
o analfabetismo cultural apregoa.
Sondheim é um dos raros nomes
que me faz acreditar na nobreza da
arte. Porque ele relembra, como os
clássicos antes dele, que no coração
do sublime existem trevas.
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