São Paulo, sábado, 05 de fevereiro de 2011

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O méxico de Rulfo

Livro reúne cem fotografias do maior escritor mexicano e revela como Juan Rulfo encarou o abismo entre a imagem e a escrita

DE SÃO PAULO

Num trecho que decidiu cortar de sua novela "Pedro Páramo", Juan Rulfo dava a entender sua relação com imagem e escrita. Suprimiu o parágrafo talvez por ser analítico demais, fértil diante da aridez que marcou tanto sua prosa quanto sua fotografia.
Era o momento em que o protagonista lembra quando soube da morte do pai. "São apenas imagens", escreveu então. "Não conservo na memória senão clarões que ficaram assentados como cimento, grãos de areia, que se deslocam quando há uma reviravolta no nosso destino."
Rulfo, morto em 1986 e considerado o maior escritor mexicano, também foi fotógrafo, ação que desenvolveu ao mesmo tempo em que escrevia seus contos e seu livro mais célebre. Mas parecia enxergar um abismo entre a ideia destrinchada em palavras e as imagens puras que enquadrava no negativo.
Da mesma forma que a memória não podia ser só uma imagem, uma fotografia independe da esfera verbal.
Surge inteira como campo de tensão entre realidade, testemunho histórico e uma espécie de sentimento que toma forma nas linhas, luzes e sombras alvo do obturador.
Cem dessas fotografias, reunidas agora num livro que sai pela Cosac Naify, mostram um México análogo às paragens descritas por Rulfo em "Pedro Páramo" e nos contos da coletânea "Chão em Chamas". Mas essa é uma analogia parcial.
Se a planície árida que descreve em seu conjunto de contos e as ruas secas de sua novela remetem às zonas desérticas do norte do México, Rulfo não registrou quase nada além da região subtropical do país em suas imagens.
Recortou a realidade em busca de uma secura um tanto maior, um preto e branco faiscante que destoava muitas vezes de um verde local.

INFERNO QUENTE
Enquanto existem no México três cidades de nome Comala, nenhuma delas se parece com aquela descrita em "Pedro Páramo", uma Comala estorricada, lugarejo que era "quente como o inferno".
Mas, no plano linguístico, sua construção fazia todo sentido, já que esse nome lembra a palavra usada pelos mexicanos para os discos de barro que servem para aquecer tortilhas, uma alusão à cidade que fazia frigir as vidas.
Na escrita, Rulfo se mostra tão fiel às palavras quanto na ambiguidade de suas fotografias, que se recusou a titular. Poucos detalhes, como data e lugar onde foi feita, estão às vezes no verso da imagem, que nunca tem nome.
Sem palavras, Rulfo tecia relações sutis entre os elementos fotografados. Uma mulher com um fardo na cabeça cruza uma praça sob o sol ardente com uma enorme igreja ao fundo, o que para alguns analistas seria sua forma de aludir ao peso do clero sobre a vida do país.
Marcas de bala em conventos e construções históricas dão a dimensão militar da presença religiosa e da conquista espanhola no país, num esforço para retratar não só um instante decisivo mas também forjar um quadro totalizador da história, tendo a imagem como testemunho tão forte quanto sua escrita.
(SILAS MARTÍ)

100 FOTOGRAFIAS
AUTOR Juan Rulfo
EDITORA Cosac Naify
TRADUÇÃO Gênese Andrade e Denise Bottmann
QUANTO R$ 100 (140 págs.)



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