São Paulo, Sexta-feira, 05 de Fevereiro de 1999
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CRÍTICA
Filme tem o topete de introduzir fantasia onde ela foi suprimida

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

"A Vida É Bela" tem sido vinculado, com frequência, à tradição de Chaplin. Pode ser visto, com mais razão, na tradição do "Dom Quixote", de Cervantes, a quem seu personagem se assemelha num aspecto fundamental: a alienação.
O Quixote, como se sabe, vitimado por suas muitas leituras dos livros de cavalaria, era capaz de ver monstros terríveis onde só havia moinhos de vento, ou de entrar numa simples estalagem, julgando estar num castelo.
Ao contrário do triste cavaleiro de Cervantes, sobre quem a realidade se abate duramente, o tempo conta a favor do simpático Guido de Benigni. Em vez de ser vitimado pela realidade, sua imaginação fantasiosa transforma sutilmente o mundo, de tal modo que, quanto mais se afasta do real, mais a adversidade volta-se a seu favor.
Assim como o "Quixote", "A Vida É Bela" também pode ser dividido em duas partes bem distintas. Na primeira, que se localiza genericamente nos anos 30, o jovem sonhador consegue, pelas artes da fantasia, casar com sua amada Dora.
A segunda, e mais célebre, passa-se nos anos 40, quando Guido é internado em um campo de extermínio nazista e forçado a usar todo o poder da fantasia para convencer seu filho de que o que vê não passa de um jogo divertido.
Na primeira parte, a fantasia do protagonista produz a realidade. Na segunda, evita que essa realidade se abata de maneira brutal sobre o menino. A diferença é que, na primeira metade, o personagem não faz distinção entre real e imaginário -a alienação é seu modo de ser. Na segunda, ele tem perfeita noção daquilo que o vitima e manobra para alienar (e salvar) seu filho da realidade.
Na verdade, é como se estivéssemos assistindo a dois filmes distintos. No primeiro, Guido é um garçom espetacularmente feliz, já que consegue tirar alegria de tudo que, para o comum dos mortais, seria um contratempo.
Do encontro com sua amada Dora (Nicoletta Braschi), quando esta cai de um prédio e, literalmente, precipita-se em seus braços, à maneira como enfrenta a burocracia necessária para abrir uma livraria, por exemplo, Guido é um sujeito que consegue subverter os fatos constrangedores, distorcendo-os em seu favor.
Acima de tudo, é preciso notar que Benigni faz, nessa primeira metade de filme, tudo que dele se esperava desde que "Daunbailó", de Jim Jarmusch (1986) o tornou internacionalmente conhecido: engata uma sucessão de gags primorosas, com um sentido de "timing" que lhe faltara em ocasiões passadas. Gags que não raro remetem ao grande burlesco da era muda, enquanto a música e o enredo remetem à tradição italiana da comédia, entre humanista e sentimental.
A segunda parte é mais polêmica (e também mais duvidosa), embora no início exista uma cena antológica (a da falsa tradução que Guido faz das palavras de um oficial alemão). Confinado em um campo de concentração, o humor tende logo a se refugiar no sentimentalismo, como recurso para não perder a empatia do espectador.
Mas o problema maior vem mesmo do campo de concentração e é antes de tudo ético. Com que direito, afinal, podemos delegar todo poder à imaginação num local como esse? Por um lado, corre-se o mesmo risco inaugurado por Spielberg, em "A Lista de Schindler", de banalizar o Holocausto, transformando-o numa espécie de espetáculo.
O papa, outro homem-chave da sociedade do espetáculo, abençoou "A Vida É Bela", o que diz muito sobre o filme: a Igreja Católica tenta passar uma borracha em suas culpas referentes à Segunda Guerra Mundial.
"A Vida É Bela", como "Schindler", é um filme que acena para a possibilidade de a humanidade se redimir de suas culpas pelos bons sentimentos, e não por uma compreensão efetiva do que se passou naquele momento.
Por outro lado, como se trata de uma situação limite, é bem possível inverter os dados lançados por Benigni e indagar: se tudo é fantasia, não teria sido o Holocausto, também ele, mera imaginação?
Nesse sentido, é preciso fechar com o helenista Pierre Vidal-Nacquet, para quem não se pode trapacear sobre a ordem dos fatos. O que aconteceu nos campos de extermínio é o crime mais hediondo da história, e isso não é só uma forma de ver ou interpretar a realidade. Aconteceu, ponto.
Embora não deva ser esse o objetivo de Benigni, seu filme tem o topete -talvez desvairado- de introduzir nos campos de extermínio justamente aquilo que suprimiram de milhões de pessoas: a fantasia, primeiro, e a vida, em seguida. Isso é difícil de engolir.

Filme: A Vida É Bela
Produção: Itália, 1997
Direção: Roberto Benigni
Com: Roberto Benigni, Nicoletta Braschi, Giorgio Cantarini Quando: estréia hoje nos cines Espaço Unibanco 2, Eldorado 5 e circuito


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