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CRÍTICA
Filme tem o topete de introduzir fantasia onde ela foi suprimida
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
"A Vida É Bela" tem sido vinculado, com frequência, à tradição
de Chaplin. Pode ser visto, com
mais razão, na tradição do "Dom
Quixote", de Cervantes, a quem
seu personagem se assemelha
num aspecto fundamental: a alienação.
O Quixote, como se sabe, vitimado por suas muitas leituras
dos livros de cavalaria, era capaz
de ver monstros terríveis onde só
havia moinhos de vento, ou de
entrar numa simples estalagem,
julgando estar num castelo.
Ao contrário do triste cavaleiro
de Cervantes, sobre quem a realidade se abate duramente, o tempo conta a favor do simpático
Guido de Benigni. Em vez de ser
vitimado pela realidade, sua imaginação fantasiosa transforma
sutilmente o mundo, de tal modo
que, quanto mais se afasta do real,
mais a adversidade volta-se a seu
favor.
Assim como o "Quixote", "A
Vida É Bela" também pode ser dividido em duas partes bem distintas. Na primeira, que se localiza genericamente nos anos 30, o
jovem sonhador consegue, pelas
artes da fantasia, casar com sua
amada Dora.
A segunda, e mais célebre, passa-se nos anos 40, quando Guido
é internado em um campo de extermínio nazista e forçado a usar
todo o poder da fantasia para
convencer seu filho de que o que
vê não passa de um jogo divertido.
Na primeira parte, a fantasia do
protagonista produz a realidade.
Na segunda, evita que essa realidade se abata de maneira brutal
sobre o menino. A diferença é
que, na primeira metade, o personagem não faz distinção entre
real e imaginário -a alienação é
seu modo de ser. Na segunda, ele
tem perfeita noção daquilo que o
vitima e manobra para alienar (e
salvar) seu filho da realidade.
Na verdade, é como se estivéssemos assistindo a dois filmes distintos. No primeiro, Guido é um
garçom espetacularmente feliz, já
que consegue tirar alegria de tudo
que, para o comum dos mortais,
seria um contratempo.
Do encontro com sua amada
Dora (Nicoletta Braschi), quando
esta cai de um prédio e, literalmente, precipita-se em seus braços, à maneira como enfrenta a
burocracia necessária para abrir
uma livraria, por exemplo, Guido
é um sujeito que consegue subverter os fatos constrangedores,
distorcendo-os em seu favor.
Acima de tudo, é preciso notar
que Benigni faz, nessa primeira
metade de filme, tudo que dele se
esperava desde que "Daunbailó",
de Jim Jarmusch (1986) o tornou
internacionalmente conhecido:
engata uma sucessão de gags primorosas, com um sentido de "timing" que lhe faltara em ocasiões
passadas. Gags que não raro remetem ao grande burlesco da era
muda, enquanto a música e o
enredo remetem à tradição italiana da comédia, entre humanista e
sentimental.
A segunda parte é mais polêmica (e também mais duvidosa),
embora no início exista uma cena
antológica (a da falsa tradução
que Guido faz das palavras de um
oficial alemão). Confinado em
um campo de concentração, o humor tende logo a se refugiar no
sentimentalismo, como recurso
para não perder a empatia do espectador.
Mas o problema maior vem
mesmo do campo de concentração e é antes de tudo ético. Com
que direito, afinal, podemos delegar todo poder à imaginação num
local como esse? Por um lado,
corre-se o mesmo risco inaugurado por Spielberg, em "A Lista de
Schindler", de banalizar o Holocausto, transformando-o numa
espécie de espetáculo.
O papa, outro homem-chave da
sociedade do espetáculo, abençoou "A Vida É Bela", o que diz
muito sobre o filme: a Igreja Católica tenta passar uma borracha
em suas culpas referentes à Segunda Guerra Mundial.
"A Vida É Bela", como "Schindler", é um filme que acena para a
possibilidade de a humanidade se
redimir de suas culpas pelos bons
sentimentos, e não por uma compreensão efetiva do que se passou
naquele momento.
Por outro lado, como se trata de
uma situação limite, é bem possível inverter os dados lançados por
Benigni e indagar: se tudo é fantasia, não teria sido o Holocausto,
também ele, mera imaginação?
Nesse sentido, é preciso fechar
com o helenista Pierre Vidal-Nacquet, para quem não se pode trapacear sobre a ordem dos fatos. O
que aconteceu nos campos de extermínio é o crime mais hediondo
da história, e isso não é só uma
forma de ver ou interpretar a realidade. Aconteceu, ponto.
Embora não deva ser esse o objetivo de Benigni, seu filme tem o
topete -talvez desvairado- de
introduzir nos campos de extermínio justamente aquilo que suprimiram de milhões de pessoas:
a fantasia, primeiro, e a vida, em
seguida. Isso é difícil de engolir.
Filme: A Vida É Bela
Produção: Itália, 1997
Direção: Roberto Benigni
Com: Roberto Benigni, Nicoletta Braschi,
Giorgio Cantarini
Quando: estréia hoje nos cines Espaço
Unibanco 2, Eldorado 5 e circuito
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