São Paulo, sábado, 05 de março de 2005

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RODAPÉ

Variações cordelistas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Folclore" é uma palavra que foi progressivamente assumindo conotação pejorativa. Criada no século 19 para designar costumes e tradições populares, atualmente remete a uma cultura fossilizada, que sobrevive nos espaços que ainda não foram atingidos pela modernidade.
Tomando a clássica dicotomia proposta por Ferdinand Tönnies em "Comunidade e Sociedade", pode-se dizer que a arte, como a entendemos hoje, é criação de indivíduos em sociedades regidas por relações contratuais, enquanto o folclore é criação coletiva de comunidades onde imperam laços sociais orgânicos.
Algumas tradições folclóricas, todavia, mantêm um surpreendente dinamismo. Exemplo mundialmente conhecido são as orquestras de "tarafs" da Romênia, que assimilam novas tecnologias à cultura cigana. Mas o caso mais próximo de nós é a literatura de cordel, cuja riqueza pode ser observada em três lançamentos: "Recordel", de Virgílio Maia, e a reedição de dois livros de Patativa do Assaré.
Há vários indícios de que o cordel se apropriou de instrumentos da indústria cultural sem perder seu DNA. A coleção "Biblioteca de Cordel" (ed. Hedra), o trabalho de intelectuais como Jerusa Pires Ferreira e Gilmar de Carvalho ou o movimento armorial -organizado por Ariano Suassuna para discutir e manter vivo o imaginário popular- são provas da vitalidade dessa poética.
Mais radical é o grupo pernambucano "Cordel do Fogo Encantado", cuja mistura de rock e cantoria popular, embalada pela toada apocalíptica do vocalista Lirinha, produz uma eclosão pop do "Brasil profundo".
Nos títulos aqui em questão, temos momentos distintos dessas variações cordelistas. "Inspiração Nordestina" foi o primeiro livro publicado por Patativa do Assaré, em 1956. "Aqui Tem Coisa" é de 1994. O longo intervalo, porém, não se traduz em diferença estilística, pois é próprio dessa tradição o caráter repetitivo, que se deve à oralidade.
O cordel (o "folheto") é a versão impressa das pelejas e cantorias de violeiros -e Patativa do Assaré foi, sobretudo, um cantador: quando menino vendeu uma ovelha para comprar uma viola, tornando-se famoso pela voz (que lhe valeu o apelido, nome de uma ave canora da Chapada do Araripe), pelos improvisos e pela memória prodigiosa.
Essa necessidade de memorização, por sua vez, explica o recurso a formas fixas como o "verso", a "colcheia" e a "décima" (estrofes típicas dos desafios e das glosas dos repentistas). O poeta cearense era célebre por sua capacidade de recitar, e Gilmar de Carvalho lembra que, aos 90 anos, ele declamava as 58 estrofes de "O Vim Vim". Para além desse aspecto técnico, porém, Patativa empregou suas rimas simples e envolventes para introduzir na efabulação nordestina, herdeira da cultura ibérica e mediterrânea, questões contemporâneas como drogas, ecologia e a condição do retirante.
Bem diferente é "Recordel". Poeta e estudioso de literatura, Virgílio Maia pertence a um universo até certo ponto exterior ao microcosmo cordelista. As páginas do livro trazem reproduções fac-similares de seus poemas, com a impressão xilográfica típica dos "folhetos" vendidos em praças e nas festas de padroeiros.
No entanto, ele percorre a via contrária do cancioneiro popular. Maia não parte de uma vivência comunitária, mas "cordeliza" textos de trovadores provençais e de autores que exploraram confluências entre o arcaico e o moderno, como o folclorista Câmara Cascudo e o escritor argentino Jorge Luis Borges (de quem glosa o conto "A Intrusa"). Trata-se de um cordel em chave metalingüística. Ou, no caso, de um "meta-cordel".


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Inspiração Nordestina
   
Autor: Patativa do Assaré
Editora: Hedra
Quanto: R$ 21 (352 págs.)

Aqui Tem Coisa
   
Autor: Patativa do Assaré
Editora: Hedra
Quanto: R$ 19,50 (224 págs.)

Recordel
   
Autor: Virgílio Maia
Editora: Ateliê/Poetaria
Quanto: R$ 33 (144 págs.)


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