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RODAPÉ
Variações cordelistas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Folclore" é uma palavra
que foi progressivamente
assumindo conotação pejorativa.
Criada no século 19 para designar
costumes e tradições populares,
atualmente remete a uma cultura
fossilizada, que sobrevive nos espaços que ainda não foram atingidos pela modernidade.
Tomando a clássica dicotomia
proposta por Ferdinand Tönnies
em "Comunidade e Sociedade",
pode-se dizer que a arte, como a
entendemos hoje, é criação de indivíduos em sociedades regidas
por relações contratuais, enquanto o folclore é criação coletiva de
comunidades onde imperam laços sociais orgânicos.
Algumas tradições folclóricas,
todavia, mantêm um surpreendente dinamismo. Exemplo mundialmente conhecido são as orquestras de "tarafs" da Romênia,
que assimilam novas tecnologias
à cultura cigana. Mas o caso mais
próximo de nós é a literatura de
cordel, cuja riqueza pode ser observada em três lançamentos:
"Recordel", de Virgílio Maia, e a
reedição de dois livros de Patativa
do Assaré.
Há vários indícios de que o cordel se apropriou de instrumentos
da indústria cultural sem perder
seu DNA. A coleção "Biblioteca
de Cordel" (ed. Hedra), o trabalho
de intelectuais como Jerusa Pires
Ferreira e Gilmar de Carvalho ou
o movimento armorial -organizado por Ariano Suassuna para discutir e manter vivo o imaginário popular- são provas da
vitalidade dessa poética.
Mais radical é o grupo pernambucano "Cordel do Fogo Encantado", cuja mistura de rock e cantoria popular, embalada pela toada apocalíptica do vocalista Lirinha, produz uma eclosão pop do
"Brasil profundo".
Nos títulos aqui em questão, temos momentos distintos dessas
variações cordelistas. "Inspiração
Nordestina" foi o primeiro livro
publicado por Patativa do Assaré,
em 1956. "Aqui Tem Coisa" é de
1994. O longo intervalo, porém,
não se traduz em diferença estilística, pois é próprio dessa tradição
o caráter repetitivo, que se deve à
oralidade.
O cordel (o "folheto") é a versão
impressa das pelejas e cantorias
de violeiros -e Patativa do Assaré foi, sobretudo, um cantador:
quando menino vendeu uma ovelha para comprar uma viola, tornando-se famoso pela voz (que
lhe valeu o apelido, nome de uma
ave canora da Chapada do Araripe), pelos improvisos e pela memória prodigiosa.
Essa necessidade de memorização, por sua vez, explica o recurso
a formas fixas como o "verso", a
"colcheia" e a "décima" (estrofes
típicas dos desafios e das glosas
dos repentistas). O poeta cearense
era célebre por sua capacidade de
recitar, e Gilmar de Carvalho lembra que, aos 90 anos, ele declamava as 58 estrofes de "O Vim Vim".
Para além desse aspecto técnico,
porém, Patativa empregou suas
rimas simples e envolventes para
introduzir na efabulação nordestina, herdeira da cultura ibérica e
mediterrânea, questões contemporâneas como drogas, ecologia e
a condição do retirante.
Bem diferente é "Recordel".
Poeta e estudioso de literatura,
Virgílio Maia pertence a um universo até certo ponto exterior ao
microcosmo cordelista. As páginas do livro trazem reproduções
fac-similares de seus poemas,
com a impressão xilográfica típica
dos "folhetos" vendidos em praças e nas festas de padroeiros.
No entanto, ele percorre a via
contrária do cancioneiro popular.
Maia não parte de uma vivência
comunitária, mas "cordeliza" textos de trovadores provençais e de
autores que exploraram confluências entre o arcaico e o moderno, como o folclorista Câmara
Cascudo e o escritor argentino
Jorge Luis Borges (de quem glosa
o conto "A Intrusa"). Trata-se de
um cordel em chave metalingüística. Ou, no caso, de um "meta-cordel".
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Inspiração Nordestina
Autor: Patativa do Assaré
Editora: Hedra
Quanto: R$ 21 (352 págs.)
Aqui Tem Coisa
Autor: Patativa do Assaré
Editora: Hedra
Quanto: R$ 19,50 (224 págs.)
Recordel
Autor: Virgílio Maia
Editora: Ateliê/Poetaria
Quanto: R$ 33 (144 págs.)
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