São Paulo, sábado, 05 de março de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

FERNANDA TORRES

Progresso


Eu não visitava Salvador há tempos; a cidade continua linda, mas o Pelourinho sofreu um certo abandono


O MODELO em cera do casal de Australopithecus afarensis na savana ancestral da África faz parte da minha agenda obrigatória sempre que vou a Nova York. Ele está no National History Museum e foi criado a partir de pegadas perpetuadas na cinza vulcânica da planície de Laetoli, na Tanzânia, 3,6 milhões de anos atrás.
O par não está caçando ou fugindo; macho e fêmea passeiam abraçados, namoram enquanto contemplam o horizonte.
Na minha última visita, encontrei um jovem amigo assim que saí do museu. Ele andava interessado no estudo do cristianismo e, quando citei meus Australopithecus de estimação, o moço me cortou dizendo que não acreditava em Darwin. Uma barreira invisível se ergueu entre nós.
O belo rapaz defendia a tese de que não viemos dos macacos. O homem seria destinado a ser homem desde a sua criação e o triunfo da maldade humana seria a prova de que a evolução jamais existiu. "Não evoluímos", dizia ele.
Eu argumentei que o julgamento moral não faz parte, a priori, da mãe natureza. A teoria da evolução não é promessa de uma linha reta em direção ao bem, ao bom e ao belo. Elefantes diminuem se privados de comida; teclados estapafúrdios, eternizados nos nossos computadores, foram desenhados justamente para ralentar o ritmo da digitação nas antigas máquinas de escrever que engastalhavam com toques rápidos. No fim, foi cada um para o seu lado sem dar crédito ao pensamento do outro.
Eu não visitava Salvador há tempos. A cidade continua exuberante e dona dos brasileiros mais felizes de nossas paróquias, mas o Pelourinho sofreu um certo abandono. Eu sei que o programa Luz para Todos levou a eletricidade para todo o Estado, mas é preciso não esquecer as conquistas feitas.
Sou carioca e sei do custo de se recuperar áreas abandonadas pelo poder público. O trabalho de restauro do Pelourinho, o cuidado com sua segurança, a sua importância para a economia, o turismo e a cultura da cidade não deveriam ter regressão.
Mas o desleixo com o Pelourinho é nada se comparado ao projeto de implantação do Complexo Porto Sul na região entre Ilhéus e Itacaré. Ele prevê a construção de dois portos, um aeroporto, uma ferrovia e uma siderúrgica.
Estive algumas vezes em Itacaré. Charles Darwin também passou por ali quando a bordo do Beagle. A deslumbrante estrada que liga as duas cidades, cercada pelo verde da mata nativa original, exibe cartazes oficiais alertando o visitante para o fato de ele estar adentrando um patrimônio da biodiversidade mundial reconhecido pela Unesco. É uma zona histórica de plantio de cacau e, no litoral, falésias únicas caem dramaticamente sobre o mar.
O escoamento da produção da Mina Pedra de Ferro, a ser explorado no município de Caetité nos próximos 15 anos pela Bahia Mineração Ltda. em sociedade com empresas do Cazaquistão, poderia acontecer ao norte dali, na Bahia de Todos os Santos, uma área já degradada pela indústria.
Compreensivelmente, parte da população local defende a construção do porto e da siderúrgica. O projeto trará desenvolvimento para a cidade e o entorno. Mas, antes de sonhar com os benefícios do progresso, aconselho os interessados a entrarem em contato com a Prefeitura do Rio de Janeiro.
Aqui, a administração pública lida com os ônus e os bônus da presença da CSA na zona oeste. Apesar da injeção de recursos que uma empresa deste porte traz para o município, sei que o prefeito Eduardo Paes deseja mesmo é o fomento de uma economia criativa, limpa e sustentável a longo prazo.
Está chovendo minério de ferro nos quintais do subúrbio fluminense, procurem se informar.
O que choca na ideia do Porto Sul é que não se trata de um matão esquecido. É o pouco que sobra dos 5% da mata atlântica original.
Houve um grande investimento privado e público naquele trecho paradisíaco de costa no sentido de preservá-lo e explorá-lo de outra maneira. Ele se consolidou em uma época de consciência ecológica e parecia protegido oficialmente, como o Pelourinho, da degradação. Choca que as novas diretrizes mudem tão violentamente planos aparentemente traçados para resistir ao tempo e à especulação.
O Ibama acaba de dar seu veto. Espero que a lei de sobrevivência do mais razoável esteja com ele.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Ferreira Gullar





Texto Anterior: IAC negocia transferir sede para casarão
Próximo Texto: Artes plásticas: Sesc prorroga inscrições para festival
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.