São Paulo, quarta-feira, 05 de maio de 2004

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MARCELO COELHO

A verdade no lugar errado

Recebi pela internet um anúncio tentador. Promete nada menos do que "A VERDADE por 270 reais!" -esse é o slogan da coisa.
Não é nenhuma publicação religiosa. Trata-se de um detector de mentiras portátil, do tamanho de um palm-top. Avalia a inflexão de voz do interlocutor. A telinha do aparelho registra o nível de veracidade do que ele diz, de 1 a 9.
Para quem estava sem idéias para o Dia das Mães, eis um presente que todas elas gostariam de receber. Claro que nem todo filho terá coragem de dar para a sua um aparelho desses; mas poderia quem sabe arranjar um que não funcione direito e dizer sorrindo que o que vale é a intenção.
O site do aparelho (www.mentiras.com.br) explica, num português horrível e de modo não muito convincente, que o "Handy Truster" usa "a tecnologia revolucionária do recognition de voz que o stress vocal subliminal dos sentidos nivela e determina a exaltação, o tom e a emoção com a análise científica e um algoritmo matemático interno".
Não entendi direito, mas tudo bem. Provavelmente o candidato a comprar tal aparelho já foi enganado muitas vezes ao longo da vida, exigindo assim explanações técnicas detalhadas antes de clicar pela aquisição.
Imagino (ou os vendedores imaginam) que se trate de um comprador muito desconfiado. O site assegura que o "Handy Truster" não é o "antigo polígrafo (detector de mentiras probido por Lei), e sim um mecanismo para sua diversão".
Como assim, "diversão"? E quem proibiu o velho e bom detector de mentiras, aquele dos filmes de gângster, cujos braços de aranha metálica desenhavam no papel uma espécie de eletrocardiograma da mutreta, da lorota, da conversa para boi dormir? Terá sido o presidente Bush? Mas então ele deveria proibir também o detector portátil.
Aliás, por que "Lei" com letra maiúscula? Será que se fala da Bíblia ou do Corão? Não faltam, certamente, interessados em proibir o aparelho. Pobres mães!
Avanço uma página no site. Os fabricantes do "Handy Truster" apontam um dedo imaginário em direção a mim: "Você não tem a convicção e nenhuma evidência. Não se preocupe!!!".
O detector portátil -isso é verdade- pode deixar mais convictos os seus usuários. Em compensação, a alguém que entra num site chamado www.mentiras.com.br, sempre se pode dizer que foi procurar a verdade em lugar errado.
Do nível 1 (verdade) até o nível 9 (mentira), o detector estipula diversas gradações: há o "tentando ser falso" (nível 2), o "exaltado" (nível 3) e o "evitando responder" (nível 6). Deste, passamos ao "extremamente exaltado" no nível 7, recaindo para o "incerto, divergente", no nível 8. Tudo isso, só pela análise dos tons de voz. Bem dizia Montaigne, citando Salviano de Massília, que entre alguns povos a mentira não é um vício, mas só um jeito de falar.
Voltando ao Dia das Mães. Vi numa loja de bebês um produto que segue os mesmos princípios do detector de mentiras: é um aparelho que analisa o choro da criança, assegurando se se trata de cólica, sono ou pura manha. O nome da máquina é "vovó eletrônica". Certamente é algo mais científico do que as vovós reais; e certamente encontrará, por parte destas últimas, a mais ferrenha oposição.
Falta ainda a máquina que, uma vez detectada a origem do choro, providencie o leite ou a troca de fraldas. Mas quem não ouviu falar da geladeira que, sozinha, acusa a falta de ovos ou latas de cerveja e automaticamente emite para o supermercado uma ordem de reposição?
Na mesma loja, que chamei de "loja de bebês", mas deveria dizer "loja de artigos para bebês" para não ser mal interpretado, havia brinquedos também. Quase todos produzem música: móbiles, ursinhos, sapos, ratazanas. E havia, claro, os próprios instrumentos musicais -pianinhos, saxofones, cornetas. O estranho, para mim, é que ninguém precisa aprender a tocar o instrumento: basta apertar um botão que o brinquedo reproduz a música já pronta, por inteiro.
Enquanto os videogames se aperfeiçoam, exigindo cada vez mais habilidade das crianças, faz tempo que os brinquedos se tornam objetos a serem observados passivamente: o circo em miniatura que se move sozinho, o soldado que sai marchando, todo brinquedo de corda, afinal, destina-se mais a hipnotizar a criança do que para "ser brincado", por assim dizer.
Os instrumentos que tocam sozinhos acentuam essa tendência. O brinquedo dispensa a criança; logo o analisador de choro e outros aparelhos dispensarão a mãe, até que uma máquina cuide da outra sem intervenção humana.
Não tenho nada contra as máquinas. Minha reação ao detector de mentiras, ao analista eletrônico de choro e ao saxofonezinho automático talvez tenham -vejo agora- um motivo pragmático. É que esses aparelhos, ao contrário de tantas outras máquinas, não estão substituindo o nosso esforço físico; e não eliminam apenas, como a calculadora ou o computador, os aspectos mais mecânicos do trabalho intelectual.
Visam, isso sim, tornar dispensáveis as artes e técnicas da interpretação. Não há coisa mais humana do que viver dentro de uma linguagem, analisar sinais, sublinhar nuanças, diagnosticar os menores indícios de anormalidade, de perturbação, de novidade, de mentira. Para quem é crítico ou articulista (e também para os leitores de livros, ou frequentadores de cinema, ou pais ao lado do berço), máquinas que façam isso representam uma séria ameaça à sobrevivência da espécie.


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