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MARCELO COELHO
A verdade no lugar errado
Recebi pela internet um
anúncio tentador. Promete
nada menos do que "A VERDADE por 270 reais!" -esse é o slogan da coisa.
Não é nenhuma publicação religiosa. Trata-se de um detector
de mentiras portátil, do tamanho
de um palm-top. Avalia a inflexão de voz do interlocutor. A telinha do aparelho registra o nível
de veracidade do que ele diz, de 1
a 9.
Para quem estava sem idéias
para o Dia das Mães, eis um presente que todas elas gostariam de
receber. Claro que nem todo filho
terá coragem de dar para a sua
um aparelho desses; mas poderia
quem sabe arranjar um que não
funcione direito e dizer sorrindo
que o que vale é a intenção.
O site do aparelho (www.mentiras.com.br) explica, num português horrível e de modo não muito convincente, que o "Handy
Truster" usa "a tecnologia revolucionária do recognition de voz
que o stress vocal subliminal dos
sentidos nivela e determina a
exaltação, o tom e a emoção com
a análise científica e um algoritmo matemático interno".
Não entendi direito, mas tudo
bem. Provavelmente o candidato
a comprar tal aparelho já foi enganado muitas vezes ao longo da
vida, exigindo assim explanações
técnicas detalhadas antes de clicar pela aquisição.
Imagino (ou os vendedores
imaginam) que se trate de um
comprador muito desconfiado. O
site assegura que o "Handy Truster" não é o "antigo polígrafo (detector de mentiras probido por
Lei), e sim um mecanismo para
sua diversão".
Como assim, "diversão"? E
quem proibiu o velho e bom detector de mentiras, aquele dos filmes de gângster, cujos braços de
aranha metálica desenhavam no
papel uma espécie de eletrocardiograma da mutreta, da lorota,
da conversa para boi dormir? Terá sido o presidente Bush? Mas
então ele deveria proibir também
o detector portátil.
Aliás, por que "Lei" com letra
maiúscula? Será que se fala da Bíblia ou do Corão? Não faltam,
certamente, interessados em proibir o aparelho. Pobres mães!
Avanço uma página no site. Os
fabricantes do "Handy Truster"
apontam um dedo imaginário
em direção a mim: "Você não tem
a convicção e nenhuma evidência. Não se preocupe!!!".
O detector portátil -isso é verdade- pode deixar mais convictos os seus usuários. Em compensação, a alguém que entra num
site chamado www.mentiras.com.br, sempre se pode dizer
que foi procurar a verdade em lugar errado.
Do nível 1 (verdade) até o nível
9 (mentira), o detector estipula
diversas gradações: há o "tentando ser falso" (nível 2), o "exaltado" (nível 3) e o "evitando responder" (nível 6). Deste, passamos ao "extremamente exaltado"
no nível 7, recaindo para o "incerto, divergente", no nível 8. Tudo
isso, só pela análise dos tons de
voz. Bem dizia Montaigne, citando Salviano de Massília, que entre alguns povos a mentira não é
um vício, mas só um jeito de falar.
Voltando ao Dia das Mães. Vi
numa loja de bebês um produto
que segue os mesmos princípios
do detector de mentiras: é um
aparelho que analisa o choro da
criança, assegurando se se trata
de cólica, sono ou pura manha. O
nome da máquina é "vovó eletrônica". Certamente é algo mais
científico do que as vovós reais; e
certamente encontrará, por parte
destas últimas, a mais ferrenha
oposição.
Falta ainda a máquina que,
uma vez detectada a origem do
choro, providencie o leite ou a troca de fraldas. Mas quem não ouviu falar da geladeira que, sozinha, acusa a falta de ovos ou latas
de cerveja e automaticamente
emite para o supermercado uma
ordem de reposição?
Na mesma loja, que chamei de
"loja de bebês", mas deveria dizer
"loja de artigos para bebês" para
não ser mal interpretado, havia
brinquedos também. Quase todos
produzem música: móbiles, ursinhos, sapos, ratazanas. E havia,
claro, os próprios instrumentos
musicais -pianinhos, saxofones,
cornetas. O estranho, para mim, é
que ninguém precisa aprender a
tocar o instrumento: basta apertar um botão que o brinquedo reproduz a música já pronta, por
inteiro.
Enquanto os videogames se
aperfeiçoam, exigindo cada vez
mais habilidade das crianças, faz
tempo que os brinquedos se tornam objetos a serem observados
passivamente: o circo em miniatura que se move sozinho, o soldado que sai marchando, todo brinquedo de corda, afinal, destina-se
mais a hipnotizar a criança do
que para "ser brincado", por assim dizer.
Os instrumentos que tocam sozinhos acentuam essa tendência.
O brinquedo dispensa a criança;
logo o analisador de choro e outros aparelhos dispensarão a mãe,
até que uma máquina cuide da
outra sem intervenção humana.
Não tenho nada contra as máquinas. Minha reação ao detector
de mentiras, ao analista eletrônico de choro e ao saxofonezinho
automático talvez tenham -vejo
agora- um motivo pragmático.
É que esses aparelhos, ao contrário de tantas outras máquinas,
não estão substituindo o nosso esforço físico; e não eliminam apenas, como a calculadora ou o
computador, os aspectos mais
mecânicos do trabalho intelectual.
Visam, isso sim, tornar dispensáveis as artes e técnicas da interpretação. Não há coisa mais humana do que viver dentro de uma
linguagem, analisar sinais, sublinhar nuanças, diagnosticar os
menores indícios de anormalidade, de perturbação, de novidade,
de mentira. Para quem é crítico
ou articulista (e também para os
leitores de livros, ou frequentadores de cinema, ou pais ao lado do
berço), máquinas que façam isso
representam uma séria ameaça à
sobrevivência da espécie.
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