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MARCELO COELHO
O mantra exorcizante dos livros de auto-ajuda
Da queda de cabelos à dependência de heroína, das crises
conjugais às viagens de turismo, não há assunto, aflição ou
prazer que não tenha, hoje em
dia, seu manual de auto-ajuda,
seu livro de aconselhamento,
seu guia de sobrevivência. O
mercado é promissor: quanto
menos as pessoas são capazes
de se virar sozinhas, mais se fala em auto-ajuda...
"Como conviver com a violência", livro de 367 páginas escrito por Lair Ribeiro e Jorge
Lordello (ed. Moderna), é um
bem-sucedido exemplar do gênero. Sugere "cuidados a serem
tomados pelos pedestres"; ensina "como identificar usuários
de drogas", dá "dicas de segurança" para as mulheres e explica o que fazer depois de um
roubo.
O efeito deste livro é involuntariamente irônico. O mundo
da confiança, das soluções otimistas e do fortalecimento interior, em que transita Lair Ribeiro, é em grande medida incompatível com a realidade externa de ameaças, sustos e crimes que cerca o cotidiano da
classe média.
Diga-se de passagem que a
palavra "classe média" é um
eufemismo para quem usa carro importado e faz compras nos
shoppings. Num país como o
Brasil, que tem os maiores índices de desigualdade de renda
do mundo, o termo corresponde a uma espécie de atestado de
inocência social.
E o habitante da periferia está, comparativamente, muito
mais ameaçado por criminosos
(e policiais) do que a perua medianamente paranóica dos Jardins. Deixemos, entretanto, a
periferia em seu devido lugar e
passemos aos conselhos do livro. O "vírus da violência", dizem os autores, está em toda
parte e tende a agravar-se. "A
solução que nos resta, interinamente, é aprender como conviver melhor com a violência nas
mais variadas formas de manifestação."
Com abundância de ilustrações, letras enormes, tabelas e
recapitulações, o livro nos ensina, por exemplo, a não reagir a
assaltantes. Há um decálogo a
respeito nas páginas 74-75. Item
um: "não reaja após o início do
roubo". Item nove: "não reaja
jamais". Item sete: "não tente
salvar seu patrimônio durante
o roubo".
A banalidade e a repetição de
conselhos desse tipo dá um pouco o que pensar. Não conheço
muito os livros de auto-ajuda
em geral, mas minha impressão
é que se dirigem a um público
com certa deficiência de atenção: martelar dois ou três preceitos básicos na cabeça do leitor faz parte do gênero. Há algo
de hipnótico nesse didatismo;
trata-se quase de anestesiar o
usuário do livro, para o qual o
esforço de ler talvez tenha algo
de inaudito e doloroso.
Curiosamente, um dos pontos
em que Lordello e Ribeiro mais
insistem é o de que devemos
sempre nos manter atentos, espertos e ligados. Os autores se
valem do conceito de "focalização". Chegando em casa, por
exemplo, "a focalização começa
um quarteirão antes. Observe se
algum suspeito está lhe seguindo ou parado na entrada de sua
residência... na dúvida, acione
a polícia".
Dirigindo o carro, procure não
ser o primeiro da fila no sinal
vermelho. "O fato de ser o primeiro da fila permite, obviamente, que você esteja lado a lado com a faixa de pedestres, ou
seja, pessoas! Sabe-se lá quem
são?'"
Não digo que tais conselhos
sejam inúteis. Eu mesmo fiquei
mais atento e "focalizado" depois de ler o livro.
O que me parece assustador,
no entanto, não são os riscos
que corro no trânsito, mas o estado de uma sociedade em que
conselhos desse tipo se tornam
até triviais. "Pessoas! Sabe-se lá
quem são?" A frase diz tudo,
mas ainda há outras coisas a dizer.
Não é o caso de observar apenas que o famoso "tecido social"
está "esgarçado", que o convívio, a sociabilidade urbana se
tornaram impossíveis. O problema maior é que, em vez de se
pensar em ações coletivas contra essa situação, a única saída
de "bom senso" é tratá-la como
questão de âmbito individual.
"Proteja-se", "feche-se", "não
fale com estranhos"; cercas, seguranças, carros blindados.
Vai-se criando um círculo vicioso. A esfera do "social", do
"público", desaparecem por
obra da desigualdade de renda,
do colapso dos governos, de tudo o que faz o Brasil aquilo que
é. Diante disso, as soluções propostas se tornam elas próprias
individuais, se manifestam unicamente no plano privado.
Que se escreva um livro de auto-ajuda sobre a violência é, assim, parte do fenômeno, parte
do escândalo. Os autores são razoáveis, têm bom senso. Mas esse bom senso parece ser, na verdade, sintoma da loucura em
que vivemos.
Adianta um livro desses? Duvido bastante. Mas a repetição
dos mesmos conselhos ao longo
de mais de 300 páginas termina
tendo um efeito engraçado. É
como uma reza, uma neurose,
um mantra hindu: o que a realidade tem de traumático e de absurdo como que se exorciza à
força de tantas frases feitas.
A banalidade, as recapitulações, os gráficos vão criando
uma espécie de calosidade no
cérebro, uma insensibilidade
neuronal. Dotando-se dessa carapaça, o leitor certamente há
de sentir-se mais seguro.
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