São Paulo, Quarta-feira, 05 de Maio de 1999
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MARCELO COELHO
O mantra exorcizante dos livros de auto-ajuda

Da queda de cabelos à dependência de heroína, das crises conjugais às viagens de turismo, não há assunto, aflição ou prazer que não tenha, hoje em dia, seu manual de auto-ajuda, seu livro de aconselhamento, seu guia de sobrevivência. O mercado é promissor: quanto menos as pessoas são capazes de se virar sozinhas, mais se fala em auto-ajuda...
"Como conviver com a violência", livro de 367 páginas escrito por Lair Ribeiro e Jorge Lordello (ed. Moderna), é um bem-sucedido exemplar do gênero. Sugere "cuidados a serem tomados pelos pedestres"; ensina "como identificar usuários de drogas", dá "dicas de segurança" para as mulheres e explica o que fazer depois de um roubo.
O efeito deste livro é involuntariamente irônico. O mundo da confiança, das soluções otimistas e do fortalecimento interior, em que transita Lair Ribeiro, é em grande medida incompatível com a realidade externa de ameaças, sustos e crimes que cerca o cotidiano da classe média.
Diga-se de passagem que a palavra "classe média" é um eufemismo para quem usa carro importado e faz compras nos shoppings. Num país como o Brasil, que tem os maiores índices de desigualdade de renda do mundo, o termo corresponde a uma espécie de atestado de inocência social.
E o habitante da periferia está, comparativamente, muito mais ameaçado por criminosos (e policiais) do que a perua medianamente paranóica dos Jardins. Deixemos, entretanto, a periferia em seu devido lugar e passemos aos conselhos do livro. O "vírus da violência", dizem os autores, está em toda parte e tende a agravar-se. "A solução que nos resta, interinamente, é aprender como conviver melhor com a violência nas mais variadas formas de manifestação."
Com abundância de ilustrações, letras enormes, tabelas e recapitulações, o livro nos ensina, por exemplo, a não reagir a assaltantes. Há um decálogo a respeito nas páginas 74-75. Item um: "não reaja após o início do roubo". Item nove: "não reaja jamais". Item sete: "não tente salvar seu patrimônio durante o roubo".
A banalidade e a repetição de conselhos desse tipo dá um pouco o que pensar. Não conheço muito os livros de auto-ajuda em geral, mas minha impressão é que se dirigem a um público com certa deficiência de atenção: martelar dois ou três preceitos básicos na cabeça do leitor faz parte do gênero. Há algo de hipnótico nesse didatismo; trata-se quase de anestesiar o usuário do livro, para o qual o esforço de ler talvez tenha algo de inaudito e doloroso.
Curiosamente, um dos pontos em que Lordello e Ribeiro mais insistem é o de que devemos sempre nos manter atentos, espertos e ligados. Os autores se valem do conceito de "focalização". Chegando em casa, por exemplo, "a focalização começa um quarteirão antes. Observe se algum suspeito está lhe seguindo ou parado na entrada de sua residência... na dúvida, acione a polícia".
Dirigindo o carro, procure não ser o primeiro da fila no sinal vermelho. "O fato de ser o primeiro da fila permite, obviamente, que você esteja lado a lado com a faixa de pedestres, ou seja, pessoas! Sabe-se lá quem são?'"
Não digo que tais conselhos sejam inúteis. Eu mesmo fiquei mais atento e "focalizado" depois de ler o livro.
O que me parece assustador, no entanto, não são os riscos que corro no trânsito, mas o estado de uma sociedade em que conselhos desse tipo se tornam até triviais. "Pessoas! Sabe-se lá quem são?" A frase diz tudo, mas ainda há outras coisas a dizer.
Não é o caso de observar apenas que o famoso "tecido social" está "esgarçado", que o convívio, a sociabilidade urbana se tornaram impossíveis. O problema maior é que, em vez de se pensar em ações coletivas contra essa situação, a única saída de "bom senso" é tratá-la como questão de âmbito individual. "Proteja-se", "feche-se", "não fale com estranhos"; cercas, seguranças, carros blindados.
Vai-se criando um círculo vicioso. A esfera do "social", do "público", desaparecem por obra da desigualdade de renda, do colapso dos governos, de tudo o que faz o Brasil aquilo que é. Diante disso, as soluções propostas se tornam elas próprias individuais, se manifestam unicamente no plano privado.
Que se escreva um livro de auto-ajuda sobre a violência é, assim, parte do fenômeno, parte do escândalo. Os autores são razoáveis, têm bom senso. Mas esse bom senso parece ser, na verdade, sintoma da loucura em que vivemos.
Adianta um livro desses? Duvido bastante. Mas a repetição dos mesmos conselhos ao longo de mais de 300 páginas termina tendo um efeito engraçado. É como uma reza, uma neurose, um mantra hindu: o que a realidade tem de traumático e de absurdo como que se exorciza à força de tantas frases feitas.
A banalidade, as recapitulações, os gráficos vão criando uma espécie de calosidade no cérebro, uma insensibilidade neuronal. Dotando-se dessa carapaça, o leitor certamente há de sentir-se mais seguro.


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