São Paulo, terça-feira, 05 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CECILIA GIANNETTI

Um nobre no kickboxing

Está abaixo da classe média, com um quê da classe do avô: não é "pit boy" que desce a mão no primeiro que lhe esbarra

ESPERO PELO amigo no Baixo Gávea. O campeão está 15 minutos atrasado. Fico atenta para as esquinas, gosto de vê-lo chegar: o jeito como joga as pernas com firmeza, um gigante.
Hoje ele vem de olho roxo. Ganhou a luta, mas sangrou também. Fugiu de uma boa no queixo; só do nariz para cima não teve esquiva que o salvasse de um chute certeiro.
Isso que dá a guarda baixa. A luva magra, da marca mais barata, que só protege uma parte do rosto. Feito cobertor de mendigo -menor que a área a ser coberta, puxa para cima e descobre a de baixo. Ou vai no olho ou vai no queixo. Acertaram o esquerdo.
Não compromete o conjunto da face quadrada de galã, mas ele é vaidoso, e é verdade que a pálpebra escura pende mais que a sã. Uma persiana torta, nem aberta, nem fechada. "Assim parece que apanhei em bar."
Gosta que saibam que venceu uma luta. Não podem pensar que ele é um qualquer, que se atracou por causa de mulher em boates da Barra da Tijuca.
Digo: "Pendura tua medalha no pescoço, que assim ninguém te confunde." Ele não acha graça, pede um chope. Campeão também bebe. Não existe para ele o perigo de engordar, graças aos exercícios e ao remédio com gosto de baunilha, "que seca".
Da turma do treino, é o único que toma cerveja. Fumar, não fuma. Mas ao álcool já desistiu de resistir faz tempo. Tá no sangue, é de família. Família famosa, cravada há gerações no Rio. Foram ricos.
Estende o braço sobre a mesa, e a tatuagem nova brilha, tinindo já sem as cascas de pele rasgada. Aponta, orgulhoso, um brasão marcado em tinta preta: "O nome do meu avô".
O velho foi playboy internacional, príncipe de Copacabana. Aquele sim soube viver, e tão bem que acabou com o dinheiro que gerações a fio poderiam ter usado folgadamente. Não ter dinheiro dói mais em quem imagina que deveria tê-lo do que em quem nasce sabendo que nunca vai ter mesmo. O velho que lhe deu sobrenome foi herói egoísta, fez com a grana o que se deve: gastar e muito bem gastado. Morreu, não deixou mais nada. Que baste o brasão.
Está abaixo da classe média, com um quê da classe do avô: não é "pit boy" que desce a mão no primeiro que lhe esbarra. Quase lorde, se comparado aos colegas, que fora do ringue dão más exibições da técnica bem treinada. O campeonato carioca é só uma vez por ano. Cavam na noite outras oportunidades para mostrar o que aprendem. Tiram o jejum de luta batendo-se por aí, nas festinhas. Ele, não.
A praça gela, um vento que só na Gávea tem. Meia-noite junta ponteiros, bares cuspindo povo para a calçada mesmo com a frente fria que, uma vez por ano, o carioca toma por inverno.
O Baixo enche de gente, e ele se preocupa mais com a própria aparência. "Tô bonito?", quer saber. Arreganha a boca, mostra os dentes como os cavalos do Jóquei Clube. Lembra o sorriso do avô em recortes amarelados da revista "O Cruzeiro". "É de família."


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Itaú lança enciclopédia de literatura
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.