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CECILIA GIANNETTI
Um nobre no kickboxing
Está abaixo da classe média, com um quê da classe do avô: não é "pit boy" que desce a mão no primeiro que lhe esbarra
ESPERO PELO amigo no Baixo
Gávea. O campeão está 15 minutos atrasado. Fico atenta
para as esquinas, gosto de vê-lo chegar: o jeito como joga as pernas com
firmeza, um gigante.
Hoje ele vem de olho roxo. Ganhou a luta, mas sangrou também.
Fugiu de uma boa no queixo; só do
nariz para cima não teve esquiva que
o salvasse de um chute certeiro.
Isso que dá a guarda baixa. A luva
magra, da marca mais barata, que só
protege uma parte do rosto. Feito
cobertor de mendigo -menor que
a área a ser coberta, puxa para
cima e descobre a de baixo. Ou vai
no olho ou vai no queixo. Acertaram
o esquerdo.
Não compromete o conjunto da
face quadrada de galã, mas ele é
vaidoso, e é verdade que a pálpebra
escura pende mais que a sã. Uma
persiana torta, nem aberta, nem
fechada. "Assim parece que apanhei
em bar."
Gosta que saibam que venceu uma
luta. Não podem pensar que ele é
um qualquer, que se atracou por
causa de mulher em boates da Barra
da Tijuca.
Digo: "Pendura tua medalha no
pescoço, que assim ninguém te confunde." Ele não acha graça, pede
um chope. Campeão também bebe.
Não existe para ele o perigo de engordar, graças aos exercícios e ao
remédio com gosto de baunilha,
"que seca".
Da turma do treino, é o único que
toma cerveja. Fumar, não fuma. Mas
ao álcool já desistiu de resistir faz
tempo. Tá no sangue, é de família.
Família famosa, cravada há gerações
no Rio. Foram ricos.
Estende o braço sobre a mesa,
e a tatuagem nova brilha, tinindo já
sem as cascas de pele rasgada.
Aponta, orgulhoso, um brasão marcado em tinta preta: "O nome do
meu avô".
O velho foi playboy internacional,
príncipe de Copacabana. Aquele sim
soube viver, e tão bem que acabou
com o dinheiro que gerações a fio
poderiam ter usado folgadamente.
Não ter dinheiro dói mais em quem
imagina que deveria tê-lo do que em
quem nasce sabendo que nunca vai
ter mesmo. O velho que lhe deu sobrenome foi herói egoísta, fez com a
grana o que se deve: gastar e muito
bem gastado. Morreu, não deixou
mais nada. Que baste o brasão.
Está abaixo da classe média, com
um quê da classe do avô: não é "pit
boy" que desce a mão no primeiro
que lhe esbarra. Quase lorde, se
comparado aos colegas, que fora do
ringue dão más exibições da técnica
bem treinada. O campeonato carioca é só uma vez por ano. Cavam na
noite outras oportunidades para
mostrar o que aprendem. Tiram o
jejum de luta batendo-se por aí, nas
festinhas. Ele, não.
A praça gela, um vento que só
na Gávea tem. Meia-noite junta
ponteiros, bares cuspindo povo para
a calçada mesmo com a frente fria
que, uma vez por ano, o carioca toma
por inverno.
O Baixo enche de gente, e ele se
preocupa mais com a própria aparência. "Tô bonito?", quer saber. Arreganha a boca, mostra os dentes como os cavalos do Jóquei Clube.
Lembra o sorriso do avô em recortes
amarelados da revista "O Cruzeiro".
"É de família."
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