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BERNARDO CARVALHO
"Escrevi sem querer"
Espero que ninguém julgue mal as minhas palavras anteriores.
Era brincadeira
NÃO HÁ razão que faça um escritor publicar em vida os esboços inacabados nos quais
ainda está trabalhando. Se por algum desastre ou por inadvertência
isso acontecer, ele certamente não
morrerá de orgulho. Mas bastará
morrer de fato para seus herdeiros e
executores testamentários (muitas
vezes, com a melhor das intenções)
rasparem o tacho das obras inacabadas. E isso especialmente nos casos
em que o sucesso do autor tiver crescido com a posteridade.
"El Secreto del Mal" (o segredo do
mal), é uma seleção de textos inconclusos (alguns apenas iniciados) encontrados nos arquivos do computador do chileno Roberto Bolaño
(1953-2003) e agora lançados por
seu editor espanhol (Anagrama). A
edição, a cargo de Ignacio Echevarría, é simultânea à publicação de outro livro inédito e muitas vezes recusado ("La Universidad Desconocida") que reúne os poemas e pequenos textos em prosa desse autor que
hoje é considerado um dos maiores
nomes da literatura latino-americana. Echevarría justifica a publicação
póstuma desses textos inacabados
em parte como documento da produção de um escritor importante e
em parte citando o próprio Bolaño
nas primeiras linhas do conto que dá
título à coletânea: "Este conto é
muito simples, embora pudesse ter
sido complicado. Também é um
conto inconcluso, porque este tipo
de história não tem final". Segundo
Echevarría, Bolaño teria cultivado,
em toda a sua literatura, uma "poética da inconclusão".
O certo é que ele era um escritor
obcecado por escritores. Para o bem
e para o mal. Seus melhores livros,
como o monumental "Os Detetives
Selvagens" (Companhia das Letras),
giram em torno de questões literárias. E metade dos 19 textos reunidos em "El Secreto del Mal" -entre
a ficção, o ensaio e a autobiografia-
trata explicitamente de escritores.
Em geral, com uma ferocidade implacável. A raiva e o ressentimento
têm a ver com a experiência pessoal
de um escritor solitário, reagindo
contra a rejeição, a hipocrisia e o
corporativismo das patotas literárias. No autobiográfico "No Sé
Leer", Bolaño conta a sua visita ao
Chile, em 1999, de onde saíra 25
anos antes, quando não passava de
um jovem desconhecido: "Quase todos os escritores chilenos, suponho
que para celebrar o meu recente
Prêmio Rómulo Gallegos, decidiram
me atacar em patota, como se diz no
Chile, ou seja, em grupo".
A violência da sua diatribe tem a
ver também com a provocação como forma de subversão e com o
combate ao que ele chama de "canalha sentimental", tomando emprestadas as palavras de Borges (um dos
poucos, ao lado de Cortázar, que Bolaño mantém acima do bem e do
mal). Nos melhores momentos, sua
prosa transfigura o ressentimento
em humor cáustico.
Sobre V.S. Naipaul em Buenos Aires, ele escreve o seguinte: "Não é
que os argentinos sejam excessivamente apreciados no resto da América Latina, mas posso assegurar que
nenhum escritor latino-americano
escreveu páginas mais demolidoramente críticas do que as de Naipaul". Em "Sabios de Sodoma", Bolaño mistura realidade e ficção para
falar da confusão e da vertigem de
Naipaul em Buenos Aires. Horrorizado, depois de ouvir uma conversa
de bar, o autor de "Uma Casa para
Mr. Biswas" deduz que a sodomia é
um costume nacional e a partir daí
constrói a sua definição do caráter
argentino.
Bolaño também esboça uma explicação muito pessoal para a atual
literatura latino-americana, em "Sevilla me Mata". Antes, como os escritores vinham das classes mais altas, optar pela literatura significava
um "escândalo social", a "destruição
dos valores aprendidos". Agora, ao
contrário, como os escritores saem
das classes média e baixa, "o que desejam no final do dia é um ligeiro
verniz de respeitabilidade". Assim,
os jovens escritores "se dedicam de
corpo e alma a vender. Alguns utilizam mais o corpo, outros utilizam
mais a alma, mas no final das contas
tratam é de vender. (...) E o que não
vende? (...) A ruptura não vende. (...)
De onde vem a nova literatura latino-americana? A resposta é simplíssima. Vem do medo. Vem do horrível (e de certa forma bastante compreensível) medo de trabalhar em
um escritório ou como ambulante,
vendendo ninharias no Paseo Ahumada. Vem do desejo de respeitabilidade, que só encobre o medo".
Logo em seguida, Bolaño se desculpa: "Espero que ninguém julgue
mal as minhas palavras anteriores.
Era brincadeira. Escrevi, e disse,
sem querer. A esta altura da vida, já
não quero inimigos gratuitos". E arremata: "Quantos se afogarão?
Creio que todos".
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