São Paulo, terça-feira, 05 de junho de 2007

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BERNARDO CARVALHO

"Escrevi sem querer"

Espero que ninguém julgue mal as minhas palavras anteriores. Era brincadeira

NÃO HÁ razão que faça um escritor publicar em vida os esboços inacabados nos quais ainda está trabalhando. Se por algum desastre ou por inadvertência isso acontecer, ele certamente não morrerá de orgulho. Mas bastará morrer de fato para seus herdeiros e executores testamentários (muitas vezes, com a melhor das intenções) rasparem o tacho das obras inacabadas. E isso especialmente nos casos em que o sucesso do autor tiver crescido com a posteridade.
"El Secreto del Mal" (o segredo do mal), é uma seleção de textos inconclusos (alguns apenas iniciados) encontrados nos arquivos do computador do chileno Roberto Bolaño (1953-2003) e agora lançados por seu editor espanhol (Anagrama). A edição, a cargo de Ignacio Echevarría, é simultânea à publicação de outro livro inédito e muitas vezes recusado ("La Universidad Desconocida") que reúne os poemas e pequenos textos em prosa desse autor que hoje é considerado um dos maiores nomes da literatura latino-americana. Echevarría justifica a publicação póstuma desses textos inacabados em parte como documento da produção de um escritor importante e em parte citando o próprio Bolaño nas primeiras linhas do conto que dá título à coletânea: "Este conto é muito simples, embora pudesse ter sido complicado. Também é um conto inconcluso, porque este tipo de história não tem final". Segundo Echevarría, Bolaño teria cultivado, em toda a sua literatura, uma "poética da inconclusão".
O certo é que ele era um escritor obcecado por escritores. Para o bem e para o mal. Seus melhores livros, como o monumental "Os Detetives Selvagens" (Companhia das Letras), giram em torno de questões literárias. E metade dos 19 textos reunidos em "El Secreto del Mal" -entre a ficção, o ensaio e a autobiografia- trata explicitamente de escritores. Em geral, com uma ferocidade implacável. A raiva e o ressentimento têm a ver com a experiência pessoal de um escritor solitário, reagindo contra a rejeição, a hipocrisia e o corporativismo das patotas literárias. No autobiográfico "No Sé Leer", Bolaño conta a sua visita ao Chile, em 1999, de onde saíra 25 anos antes, quando não passava de um jovem desconhecido: "Quase todos os escritores chilenos, suponho que para celebrar o meu recente Prêmio Rómulo Gallegos, decidiram me atacar em patota, como se diz no Chile, ou seja, em grupo".
A violência da sua diatribe tem a ver também com a provocação como forma de subversão e com o combate ao que ele chama de "canalha sentimental", tomando emprestadas as palavras de Borges (um dos poucos, ao lado de Cortázar, que Bolaño mantém acima do bem e do mal). Nos melhores momentos, sua prosa transfigura o ressentimento em humor cáustico.
Sobre V.S. Naipaul em Buenos Aires, ele escreve o seguinte: "Não é que os argentinos sejam excessivamente apreciados no resto da América Latina, mas posso assegurar que nenhum escritor latino-americano escreveu páginas mais demolidoramente críticas do que as de Naipaul". Em "Sabios de Sodoma", Bolaño mistura realidade e ficção para falar da confusão e da vertigem de Naipaul em Buenos Aires. Horrorizado, depois de ouvir uma conversa de bar, o autor de "Uma Casa para Mr. Biswas" deduz que a sodomia é um costume nacional e a partir daí constrói a sua definição do caráter argentino.
Bolaño também esboça uma explicação muito pessoal para a atual literatura latino-americana, em "Sevilla me Mata". Antes, como os escritores vinham das classes mais altas, optar pela literatura significava um "escândalo social", a "destruição dos valores aprendidos". Agora, ao contrário, como os escritores saem das classes média e baixa, "o que desejam no final do dia é um ligeiro verniz de respeitabilidade". Assim, os jovens escritores "se dedicam de corpo e alma a vender. Alguns utilizam mais o corpo, outros utilizam mais a alma, mas no final das contas tratam é de vender. (...) E o que não vende? (...) A ruptura não vende. (...) De onde vem a nova literatura latino-americana? A resposta é simplíssima. Vem do medo. Vem do horrível (e de certa forma bastante compreensível) medo de trabalhar em um escritório ou como ambulante, vendendo ninharias no Paseo Ahumada. Vem do desejo de respeitabilidade, que só encobre o medo".
Logo em seguida, Bolaño se desculpa: "Espero que ninguém julgue mal as minhas palavras anteriores. Era brincadeira. Escrevi, e disse, sem querer. A esta altura da vida, já não quero inimigos gratuitos". E arremata: "Quantos se afogarão? Creio que todos".


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