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"LEGENDA ÁUREA - VIDAS DE SANTOS"
Publicada entre 1253 e 1270, obra de Jacopo de Varazze apresenta 175 biografias
Teor alegórico reveste narrativas sobre santos
RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Um aspecto curioso da "Commedia" de Dante Alighieri
(1265-1321) é a caracterização dos
santos. Em especial, a de são Bernardo, que, com sua ductilidade
de feição e temperamento, guia o
poeta pelos diversos céus do Paraíso até a amada Beatriz, que o levará ao empíreo e, deste, àquela
luz que cega de tão potente: Deus.
Boa parte dessa caracterização
deveria se basear em convenções
da época, conhecidas de todos, independentemente de classes sociais e ofícios. Mas há também
aqui um ingrediente literário fortíssimo, com certeza extraído de
obras hagiográficas (aquelas que
tratam da vida dos santos). Talvez
não por acaso, um dos maiores
autores desse gênero foi contemporâneo do poeta florentino, e sua
obra, certamente uma das fontes
para seu poema teológico.
Jacopo nasceu na cidade de Varazze, em 1226. Começou sua vida
religiosa em confrarias mendicantes, então muito comuns. Logo ingressa na Ordem Dominicana, na qual se destacaria, a ponto
de chegar a ser sagrado arcebispo
de Gênova pelo papa Nicolau 4º.
Deixou-nos uma série de obras de
valor, entre elas a "Crônica de Gênova". Mas sua obra de maior
destaque é sem dúvida a "Legenda Áurea", publicada em data incerta, entre os anos 1253 e 1270.
As vidas contidas nessa obra são
todas desenvolvidas como exemplos a serem seguidos e revestidas
de um forte teor alegórico. É compreensivo que, estando a serviço
de fins religiosos, muitas atenuem
os traços pagãos ou mesmo pecaminosos dos santos que viveram
no cristianismo primitivo. É o que
acontece com santo Agostinho.
Mas isso não compromete a prosa
simples, clara e elegante de Jacopo, uma das grandes virtudes do
livro e aquilo que o faz tão próximo de nós.
Outro ponto interessantíssimo:
as etimologias. Mais da metade
das biografias começa por uma
explanação linguística, que relaciona o nome do santo às suas virtudes. Mas há um detalhe: a maior
parte delas ou é deliberadamente
falsa, ou é uma interpretação forçada. Ao contrário do que se crê,
esses foram procedimentos bastante usuais, se diria quase a regra
durante muitos séculos, e tinham
por finalidade mais ressaltar a
unidade divina presente na Babel
das línguas do que aspirar a uma
pretensa verdade científica.
Quanto às vidas dos santos, há
que se destacar a saborosa narrativa de são João Batista, o tom pagão e fantástico de santo Antônio
e as vidas daqueles que depois se
tornaram grandes doutores da
Igreja: são Jerônimo, santo Eusébio e são João Crisóstomo etc.
A obra de Jacopo não é apenas
um rico repositório que sintetiza
as obras pregressas e uma fonte
indispensável para o estudo da
história das religiões, da iconografia e das letras. Ela serviu de
base para a figuração posterior,
alimentando o imaginário ocidental e vindo desaguar em algumas obras-primas da literatura.
Exemplos: a "Tentação de Santo
Antônio" e a novela "São Juliano,
o Hospedeiro", ambas de Gustave
Flaubert (1821-1880), são praticamente decalcadas das vidas dos
santos Antônio e Juliano constantes nesta "Legenda Áurea".
A presente edição traz a totalidade das 175 vidas, traduzidas do
latim, prefaciadas e organizadas
por Hilário Franco Júnior, um dos
mais conceituados medievalistas
brasileiros. Creio que não seja
exagero dizer que a "Legenda Áurea" está para a literatura hagiográfica como a "Commedia", de
Dante, e a "Summa Teologica", de
Tomás de Aquino (1224-1274), estão para a poesia e a teologia, respectivamente. Uma curiosidade:
no "Purgatório" Dante se refere a
Jacopo meramente como um cidadão de Gênova. Mal sabia que
estariam juntos, no mesmo círculo da eternidade.
Legenda Áurea - Vidas de Santos
Autor: Jacopo de Varazze
Organização e tradução: Hilário
Franco Júnior
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 85 (1.056 págs.)
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