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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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"LEGENDA ÁUREA - VIDAS DE SANTOS"

Publicada entre 1253 e 1270, obra de Jacopo de Varazze apresenta 175 biografias

Teor alegórico reveste narrativas sobre santos

RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Um aspecto curioso da "Commedia" de Dante Alighieri (1265-1321) é a caracterização dos santos. Em especial, a de são Bernardo, que, com sua ductilidade de feição e temperamento, guia o poeta pelos diversos céus do Paraíso até a amada Beatriz, que o levará ao empíreo e, deste, àquela luz que cega de tão potente: Deus.
Boa parte dessa caracterização deveria se basear em convenções da época, conhecidas de todos, independentemente de classes sociais e ofícios. Mas há também aqui um ingrediente literário fortíssimo, com certeza extraído de obras hagiográficas (aquelas que tratam da vida dos santos). Talvez não por acaso, um dos maiores autores desse gênero foi contemporâneo do poeta florentino, e sua obra, certamente uma das fontes para seu poema teológico.
Jacopo nasceu na cidade de Varazze, em 1226. Começou sua vida religiosa em confrarias mendicantes, então muito comuns. Logo ingressa na Ordem Dominicana, na qual se destacaria, a ponto de chegar a ser sagrado arcebispo de Gênova pelo papa Nicolau 4º. Deixou-nos uma série de obras de valor, entre elas a "Crônica de Gênova". Mas sua obra de maior destaque é sem dúvida a "Legenda Áurea", publicada em data incerta, entre os anos 1253 e 1270.
As vidas contidas nessa obra são todas desenvolvidas como exemplos a serem seguidos e revestidas de um forte teor alegórico. É compreensivo que, estando a serviço de fins religiosos, muitas atenuem os traços pagãos ou mesmo pecaminosos dos santos que viveram no cristianismo primitivo. É o que acontece com santo Agostinho. Mas isso não compromete a prosa simples, clara e elegante de Jacopo, uma das grandes virtudes do livro e aquilo que o faz tão próximo de nós.
Outro ponto interessantíssimo: as etimologias. Mais da metade das biografias começa por uma explanação linguística, que relaciona o nome do santo às suas virtudes. Mas há um detalhe: a maior parte delas ou é deliberadamente falsa, ou é uma interpretação forçada. Ao contrário do que se crê, esses foram procedimentos bastante usuais, se diria quase a regra durante muitos séculos, e tinham por finalidade mais ressaltar a unidade divina presente na Babel das línguas do que aspirar a uma pretensa verdade científica.
Quanto às vidas dos santos, há que se destacar a saborosa narrativa de são João Batista, o tom pagão e fantástico de santo Antônio e as vidas daqueles que depois se tornaram grandes doutores da Igreja: são Jerônimo, santo Eusébio e são João Crisóstomo etc.
A obra de Jacopo não é apenas um rico repositório que sintetiza as obras pregressas e uma fonte indispensável para o estudo da história das religiões, da iconografia e das letras. Ela serviu de base para a figuração posterior, alimentando o imaginário ocidental e vindo desaguar em algumas obras-primas da literatura. Exemplos: a "Tentação de Santo Antônio" e a novela "São Juliano, o Hospedeiro", ambas de Gustave Flaubert (1821-1880), são praticamente decalcadas das vidas dos santos Antônio e Juliano constantes nesta "Legenda Áurea".
A presente edição traz a totalidade das 175 vidas, traduzidas do latim, prefaciadas e organizadas por Hilário Franco Júnior, um dos mais conceituados medievalistas brasileiros. Creio que não seja exagero dizer que a "Legenda Áurea" está para a literatura hagiográfica como a "Commedia", de Dante, e a "Summa Teologica", de Tomás de Aquino (1224-1274), estão para a poesia e a teologia, respectivamente. Uma curiosidade: no "Purgatório" Dante se refere a Jacopo meramente como um cidadão de Gênova. Mal sabia que estariam juntos, no mesmo círculo da eternidade.


Legenda Áurea - Vidas de Santos
    
Autor: Jacopo de Varazze Organização e tradução: Hilário Franco Júnior Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 85 (1.056 págs.)



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