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O livro "A Missão Portuguesa" mapeia a influência de intelectuais portugueses sobre a cultura brasileira
Presença de além-mar
Os vários artigos reunidos em
"A Missão Portuguesa" rastreiam
a influência e a presença de intelectuais portugueses no Brasil.
Leia a seguir trechos do prefácio
inédito do crítico literário Antonio Candido para o livro organizado por Rui Moreira Leite e Fernando Lemos em co-edição da
Unesp e da Edusc.
Nós, que somos das primeiras
turmas da Faculdade de Filosofia
da Universidade de São Paulo,
fundada em 1934, temos vivamente no espírito e nas lembranças a idéia de "missão", referida
aos grupos de professores estrangeiros que vieram contratados
para inaugurar o ensino de matérias até então inexistentes em nível superior, ou renovar o de outras que, no currículo das velhas
escolas, estavam ligadas ao intuito
prático de formar profissionais liberais. Para nós, foram importantes a "missão francesa" e a italiana, contratadas e compostas oficialmente, de acordo com os governos dos seus países.
Poder-se-ia falar também na
"missão alemã", mas por extensão, pois os que a compunham de
maneira virtual foram recrutados
em caráter individual, sem qualquer contato com o governo de
seu país, por serem todos de origem israelita, membros de um
grupo proscrito que desejavam
expatriar-se. E havia escoteiros de
outras nacionalidades, como um
inglês e o português Rebelo Gonçalves. Quando este voltou a Portugal, vieram Fidelino de Figueiredo e Urbano Canuto Soares,
ambos nos cursos de letras. De
modo que, tendo havido apenas
três, não houve uma "missão portuguesa" na universidade.
No entanto, quando pensamos
na atuação de tantos intelectuais
portugueses no Brasil, como os
que são estudados neste livro,
vem logo a idéia de que eles constituíram ao longo dos anos um
agrupamento virtual de grande
importância, que pesou mais do
que se pensa em muitos setores:
jornalismo; artes plásticas; política; ensino universitário de letras,
história, filosofia, matemática. Se
concebermos essa ampla atividade como emanada de um conjunto não sistemático nem cronologicamente concentrado de pessoas, veremos que ela abrangeu
boa parte do país e contribuiu para o adensamento de nossa cultura. Daí o rótulo que propus de
"missão portuguesa" para designar essa atuação.
Missão de tipo especial, não
apenas por não ser formada por
grupos definidos nem ter existido
oficialmente, mas porque atuou
dentro do universo da mesma língua. No meu tempo de estudante
e jovem docente na Universidade
de São Paulo, os professores franceses e italianos davam as aulas
em francês e italiano. Só os alemães tiveram de fazer um esforço
enorme para ministrar as suas em
português, antes de aprendê-lo
bem, mandando traduzi-las e lendo-as com o sotaque que Deus facultasse.
Ora, a atividade dos portugueses não encontrava tais barreiras e
estabelecia contato fácil com os
receptores, o que facultou a sua
presença em setores praticamente
fechados a estrangeiros de outras
línguas, como o jornalismo.
Isso está ligado à situação peculiar que caracteriza as relações entre brasileiros e portugueses. Eles
são estrangeiros aqui e nós lá. Nós
temos traços próprios e o velho
Brasil luso-brasileiro deixou de
existir como dimensão única, ante a profunda mistura racial e cultural devido às imigrações. Mas
há aqui um substrato unificador
poderoso, formado pela língua e
por influências originárias de todo tipo (literárias, folclóricas, arquitetônicas, urbanísticas, familiares), geradoras de uma fôrma
na qual se acomodam os neobrasileiros de vária origem. Portanto,
no Brasil, os portugueses são estrangeiros de tipo especial, que se
ajustam de maneira também especial. Daí a situação diferente
dos intelectuais (sentido amplo)
que a partir dos anos 30 formaram o que denominei "missão".
A este propósito, convém registrar que para os da minha geração
a presença física deles despertava
ressonâncias inconfundíveis, porque nos havíamos nutrido maciçamente de literatura portuguesa,
o que gerou uma familiaridade
que fazia deles uma espécie de encarnação do que conhecíamos
nos livros como representação da
natureza, das cidades, dos costumes, dos tipos humanos, da sensibilidade de Portugal.
Se couberem dados pessoais,
gostaria de dizer que me nutri de
autores portugueses desde os 11
anos, a começar por Alexandre
Herculano, não apenas o ficcionista das "Lendas e Narrativas",
do "Monasticon", d'"O Bobo",
mas o autor do livro sobre as origens da Inquisição em Portugal.
Cheguei a ler autores hoje em dia
inverossímeis, como Arnaldo Gama, para não falar de Camilo, Júlio Diniz, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, cujo "A Morgadinha
de Valflor" era lido em certas famílias quase tanto quanto a calamitosa "Ceia dos Cardeais", de
Júlio Dantas. (...)
Essa impregnação era comum a
todos os que faziam o curso secundário, porque as antologias familiarizavam com os textos da literatura portuguesa, desde a canção de Pay Soares de Taveiros até
os contemporâneos, tendo por
pratos de resistência coisas como
trechos do padre Manoel Bernardes na "Nova Floresta", o elogio
da palavra, de Latino Coelho, "A
Última Corrida de Touros em Salvaterra", de Rebelo da Silva e outros tais. A impregnação era com
certeza de mão única, pois os jovens portugueses não teriam nas
suas antologias autores brasileiros para estabelecerem algum
equilíbrio. Mas nós não apenas
mergulhávamos nos textos de
além-mar, como líamos clássicos
universais em traduções de lá, a
exemplo de certo Shakespeare
mal ajambrado por uns Henrique
Braga e Domingos Ramos ou um
pétreo "Paraíso Perdido" deformado por Lima Leitão.
Em certos casos as traições podiam ser saborosas na sua irregularidade, alterando os traços originais graças a uma espécie de incorporação à fala mais caracteristicamente portuguesa. (...)
Evoco essas experiências remotas para sugerir como estávamos
mergulhados no universo português, até no que tange à tradução
de textos importantes da literatura ocidental. São vozes que vêm
da infância e da adolescência e se
prolongaram na mocidade por
experiências novas, como as leituras de Antônio Sérgio, José Régio,
Fernando Pessoa. Vozes ouvidas
por meio dos livros, como presença remota de além dos mares. Mas
nos anos 40 começaram a chegar
intelectuais de carne e osso, num
movimento que se foi ampliando
até engrossar nos de 50 e 60.
Eram presenças vivas, trazendo
como coisa nova a convivência
pessoal, não livresca. Lembro-me
dos primeiros que passaram por
aqui, estabelecendo laços mais
constantes; gente como Antônio
Botto, José Osório de Oliveira,
Antônio Pedro, Novais Teixeira,
além dos mencionados professores universitários, que já estavam
desde o decênio anterior. Ou como Jaime Cortesão e Rodrigues
Lapa, seguidos por Casais Monteiro, Jorge de Sena e tantos outros que estão presentes nas páginas deste livro.
Não há, portanto, necessidade
de falar deles. Mas talvez valha a
pena, já que estou em chave bastante pessoal, dizer que o primeiro intelectual português com
quem convivi foi Antônio Pedro,
que apareceu em São Paulo em
1941 e se ligou ao nosso grupo,
que acabava de lançar a revista
"Clima", em cujo segundo número publicou dois poemas.
No mesmo número publiquei
sem assinatura, como coisa de Redação, um artigo sobre ele, assinalando a nossa ignorância da atualidade cultural portuguesa e propondo o estabelecimento de um
diálogo com os jovens de além-mar. Nós demos o exemplo patrocinando uma exposição de
quadros de Antônio Pedro, que
eu caracterizava naquele artigo
como "rapagão louro e forte, um
ilhéu de olhos claros, iluminado
por uma dedicação confiante e tenaz à sua obra".
A exposição fez certo barulho,
inclusive graças à ousadia surrealista, e teve catálogo com prefácio
de Giuseppe Ungaretti, que então
ensinava literatura italiana na
Universidade de São Paulo. (...)
A OBRA
A Missão Portuguesa
Organizadores: Rui Moreira
Leite e Fernando Ramos
Editoras: Unesp e Edusc
Quanto: preço ainda não definido
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