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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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O livro "A Missão Portuguesa" mapeia a influência de intelectuais portugueses sobre a cultura brasileira

Presença de além-mar

Os vários artigos reunidos em "A Missão Portuguesa" rastreiam a influência e a presença de intelectuais portugueses no Brasil. Leia a seguir trechos do prefácio inédito do crítico literário Antonio Candido para o livro organizado por Rui Moreira Leite e Fernando Lemos em co-edição da Unesp e da Edusc.
 
Nós, que somos das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, fundada em 1934, temos vivamente no espírito e nas lembranças a idéia de "missão", referida aos grupos de professores estrangeiros que vieram contratados para inaugurar o ensino de matérias até então inexistentes em nível superior, ou renovar o de outras que, no currículo das velhas escolas, estavam ligadas ao intuito prático de formar profissionais liberais. Para nós, foram importantes a "missão francesa" e a italiana, contratadas e compostas oficialmente, de acordo com os governos dos seus países.
Poder-se-ia falar também na "missão alemã", mas por extensão, pois os que a compunham de maneira virtual foram recrutados em caráter individual, sem qualquer contato com o governo de seu país, por serem todos de origem israelita, membros de um grupo proscrito que desejavam expatriar-se. E havia escoteiros de outras nacionalidades, como um inglês e o português Rebelo Gonçalves. Quando este voltou a Portugal, vieram Fidelino de Figueiredo e Urbano Canuto Soares, ambos nos cursos de letras. De modo que, tendo havido apenas três, não houve uma "missão portuguesa" na universidade.
No entanto, quando pensamos na atuação de tantos intelectuais portugueses no Brasil, como os que são estudados neste livro, vem logo a idéia de que eles constituíram ao longo dos anos um agrupamento virtual de grande importância, que pesou mais do que se pensa em muitos setores: jornalismo; artes plásticas; política; ensino universitário de letras, história, filosofia, matemática. Se concebermos essa ampla atividade como emanada de um conjunto não sistemático nem cronologicamente concentrado de pessoas, veremos que ela abrangeu boa parte do país e contribuiu para o adensamento de nossa cultura. Daí o rótulo que propus de "missão portuguesa" para designar essa atuação.
Missão de tipo especial, não apenas por não ser formada por grupos definidos nem ter existido oficialmente, mas porque atuou dentro do universo da mesma língua. No meu tempo de estudante e jovem docente na Universidade de São Paulo, os professores franceses e italianos davam as aulas em francês e italiano. Só os alemães tiveram de fazer um esforço enorme para ministrar as suas em português, antes de aprendê-lo bem, mandando traduzi-las e lendo-as com o sotaque que Deus facultasse.
Ora, a atividade dos portugueses não encontrava tais barreiras e estabelecia contato fácil com os receptores, o que facultou a sua presença em setores praticamente fechados a estrangeiros de outras línguas, como o jornalismo.
Isso está ligado à situação peculiar que caracteriza as relações entre brasileiros e portugueses. Eles são estrangeiros aqui e nós lá. Nós temos traços próprios e o velho Brasil luso-brasileiro deixou de existir como dimensão única, ante a profunda mistura racial e cultural devido às imigrações. Mas há aqui um substrato unificador poderoso, formado pela língua e por influências originárias de todo tipo (literárias, folclóricas, arquitetônicas, urbanísticas, familiares), geradoras de uma fôrma na qual se acomodam os neobrasileiros de vária origem. Portanto, no Brasil, os portugueses são estrangeiros de tipo especial, que se ajustam de maneira também especial. Daí a situação diferente dos intelectuais (sentido amplo) que a partir dos anos 30 formaram o que denominei "missão".
A este propósito, convém registrar que para os da minha geração a presença física deles despertava ressonâncias inconfundíveis, porque nos havíamos nutrido maciçamente de literatura portuguesa, o que gerou uma familiaridade que fazia deles uma espécie de encarnação do que conhecíamos nos livros como representação da natureza, das cidades, dos costumes, dos tipos humanos, da sensibilidade de Portugal.
Se couberem dados pessoais, gostaria de dizer que me nutri de autores portugueses desde os 11 anos, a começar por Alexandre Herculano, não apenas o ficcionista das "Lendas e Narrativas", do "Monasticon", d'"O Bobo", mas o autor do livro sobre as origens da Inquisição em Portugal. Cheguei a ler autores hoje em dia inverossímeis, como Arnaldo Gama, para não falar de Camilo, Júlio Diniz, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, cujo "A Morgadinha de Valflor" era lido em certas famílias quase tanto quanto a calamitosa "Ceia dos Cardeais", de Júlio Dantas. (...)
Essa impregnação era comum a todos os que faziam o curso secundário, porque as antologias familiarizavam com os textos da literatura portuguesa, desde a canção de Pay Soares de Taveiros até os contemporâneos, tendo por pratos de resistência coisas como trechos do padre Manoel Bernardes na "Nova Floresta", o elogio da palavra, de Latino Coelho, "A Última Corrida de Touros em Salvaterra", de Rebelo da Silva e outros tais. A impregnação era com certeza de mão única, pois os jovens portugueses não teriam nas suas antologias autores brasileiros para estabelecerem algum equilíbrio. Mas nós não apenas mergulhávamos nos textos de além-mar, como líamos clássicos universais em traduções de lá, a exemplo de certo Shakespeare mal ajambrado por uns Henrique Braga e Domingos Ramos ou um pétreo "Paraíso Perdido" deformado por Lima Leitão.
Em certos casos as traições podiam ser saborosas na sua irregularidade, alterando os traços originais graças a uma espécie de incorporação à fala mais caracteristicamente portuguesa. (...)
Evoco essas experiências remotas para sugerir como estávamos mergulhados no universo português, até no que tange à tradução de textos importantes da literatura ocidental. São vozes que vêm da infância e da adolescência e se prolongaram na mocidade por experiências novas, como as leituras de Antônio Sérgio, José Régio, Fernando Pessoa. Vozes ouvidas por meio dos livros, como presença remota de além dos mares. Mas nos anos 40 começaram a chegar intelectuais de carne e osso, num movimento que se foi ampliando até engrossar nos de 50 e 60.
Eram presenças vivas, trazendo como coisa nova a convivência pessoal, não livresca. Lembro-me dos primeiros que passaram por aqui, estabelecendo laços mais constantes; gente como Antônio Botto, José Osório de Oliveira, Antônio Pedro, Novais Teixeira, além dos mencionados professores universitários, que já estavam desde o decênio anterior. Ou como Jaime Cortesão e Rodrigues Lapa, seguidos por Casais Monteiro, Jorge de Sena e tantos outros que estão presentes nas páginas deste livro.
Não há, portanto, necessidade de falar deles. Mas talvez valha a pena, já que estou em chave bastante pessoal, dizer que o primeiro intelectual português com quem convivi foi Antônio Pedro, que apareceu em São Paulo em 1941 e se ligou ao nosso grupo, que acabava de lançar a revista "Clima", em cujo segundo número publicou dois poemas.
No mesmo número publiquei sem assinatura, como coisa de Redação, um artigo sobre ele, assinalando a nossa ignorância da atualidade cultural portuguesa e propondo o estabelecimento de um diálogo com os jovens de além-mar. Nós demos o exemplo patrocinando uma exposição de quadros de Antônio Pedro, que eu caracterizava naquele artigo como "rapagão louro e forte, um ilhéu de olhos claros, iluminado por uma dedicação confiante e tenaz à sua obra".
A exposição fez certo barulho, inclusive graças à ousadia surrealista, e teve catálogo com prefácio de Giuseppe Ungaretti, que então ensinava literatura italiana na Universidade de São Paulo. (...)


A OBRA

A Missão Portuguesa
Organizadores: Rui Moreira Leite e Fernando Ramos
Editoras: Unesp e Edusc
Quanto: preço ainda não definido


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