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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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CRÍTICA

Ação portuguesa abarca do candomblé ao concretismo

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Muito já se falou e escreveu sobre a chamada "missão francesa" que ajudou a criar a Universidade de São Paulo, em 1934, com intelectuais como Lévi-Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel.
Mas houve também, extra-oficialmente -ou melhor, anti-oficialmente-, uma "missão portuguesa", muito mais dispersa no tempo e no espaço: desde o final dos anos 20, quando se instalou em Portugal a ditadura salazarista, e com mais intensidade a partir da década de 50, vieram ao Brasil, em caráter definitivo ou temporário, dezenas de intelectuais lusos que travaram com a cultura brasileira uma rica relação de influência recíproca.
O livro "A Missão Portuguesa" busca traçar um amplo e variado panorama desse influxo ultramarino, destacando a atuação de seus principais personagens e também algumas instituições criadas aqui por eles, como o jornal anti-salazarista "Portugal Democrático" e a editora de livros infantis Giroflé.
De modo apropriado, o volume é organizado conjuntamente por um brasileiro, o arquiteto e professor universitário Rui Moreira Leite, e um português, o poeta, fotógrafo e artista plástico Fernando Lemos.
Os textos reunidos -alguns inéditos, outros publicados originalmente em revistas acadêmicas ou em livros portugueses- são também de natureza variada.
Predominam os depoimentos pessoais de quem conviveu com os intelectuais em questão (como o do historiador Jobson de Arruda sobre seu mestre português Barradas de Carvalho) e os artigos que procuram sintetizar sua contribuição à cultura brasileira e universal. É o caso, entre outros, do texto da ensaísta e professora de literatura Leyla Perrone-Moisés sobre o crítico literário Adolfo Casais Monteiro.
De acordo com Rui Moreira Leite, a idéia do livro surgiu como desdobramento da mostra organizada para acompanhar o Congresso Internacional "Sinais de Jorge de Sena", realizado em Araraquara em 1998.
"Listamos nomes de intelectuais que estavam representados na exposição e de outros que fomos lembrando. Formamos um conselho editorial para sugerir colaboradores e homenageados", diz Moreira Leite.
Trata-se de dois elencos de peso. O dos homenageados inclui poetas-críticos como Jorge de Sena e Ernesto de Melo e Castro, ensaístas como Casais Monteiro e Eduardo Lourenço, historiadores como Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa e Barradas de Carvalho, cientistas sociais como Agostinho da Silva e muitos outros.
No time dos colaboradores estão, por exemplo, Antonio Candido, Walnice Nogueira Galvão e Wilson Martins, além da citada Leyla Perrone-Moisés e dos organizadores Rui Moreira Leite e Fernando Lemos.
Este último, aliás, comparece como autor (escreve sobre a editora Giroflé) e tema (abordado por Mauricio Mattos).
A gama de assuntos coberta pela benfazeja invasão portuguesa é inesgotável. Vai desde os estudos afro-brasileiros (Agostinho da Silva) até a poesia concreta (Melo e Castro), passando pela leitura crítica da obra de Gilberto Freyre (Edu ardo Lourenço) e pelo estudo dos árcades mineiros (Rodrigues Lapa).
Do mesmo modo, foi vasto o território geográfico ocupado pelos visitantes e/ou imigrantes lusos. Sua ação cultural deitou raízes sobretudo em São Paulo, Bahia, Pernambuco e Minas Gerais.
Um aspecto subsidiário, mas particularmente interessante do livro é a marca da experiência brasileira no pensamento e na obra dos intelectuais d'além-mar aqui aportados.
Dois exemplos são curiosos. Quando lecionava na Universidade da Bahia, no final dos anos 50, Eduardo Lourenço foi abordado por um jovem e irrequieto estudante que lhe jogou nas mãos o romance "Grande Sertão: Veredas", dizendo: "Professor, para conhecer o Brasil, o senhor precisa ler este livro". O estudante era Glauber Rocha.
Lourenço, hoje tido como um dos maiores ensaístas da língua portuguesa, acabou se tornando um estudioso apaixonado da obra de Guimarães Rosa.
O outro caso é relatado no livro por Ernesto de Melo e Castro, em depoimento a Benjamin Abdala Júnior. Segundo o poeta, em sua primeira passagem pelo Rio, nos anos 60, ele assistiu a um show de Paulinho da Viola e se apaixonou pela música brasileira.
"E comprei muitos discos de MPB (Chico Buarque, Elis Regina, Nara Leão e muitos outros) que constituíram a iniciação musical brasileira da minha filha Eugénia, então com 8 anos de idade, cujos resultados ainda hoje perduram na sua carreira de cantora internacional."
Melo e Castro, que vive em São Paulo, é há quatro décadas um grande interlocutor de Haroldo de Campos e dos concretos.
O tema não tem fim. O próprio Moreira Leite afirma que o livro está longe de esgotá-lo. "Há um trabalho gigantesco a ser feito. Muita coisa importante ficou de fora." Ele lamenta especialmente duas lacunas: a do grupo de matemáticos portugueses que se fixou no Recife, liderado por Rui Luís Gomes, e a do poeta João Apolinário, cuja viúva só foi encontrada pelos organizadores quando o livro já estava pronto.
Fica o convite -e o desafio- para outras obras semelhantes.


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