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CRÍTICA
Ação portuguesa abarca do candomblé ao concretismo
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Muito já se falou e escreveu
sobre a chamada "missão
francesa" que ajudou a criar a
Universidade de São Paulo, em
1934, com intelectuais como Lévi-Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel.
Mas houve também, extra-oficialmente -ou melhor, anti-oficialmente-, uma "missão portuguesa", muito mais dispersa
no tempo e no espaço: desde o final dos anos 20, quando se instalou em Portugal a ditadura salazarista, e com mais intensidade a
partir da década de 50, vieram ao
Brasil, em caráter definitivo ou
temporário, dezenas de intelectuais lusos que travaram com a
cultura brasileira uma rica relação de influência recíproca.
O livro "A Missão Portuguesa"
busca traçar um amplo e variado
panorama desse influxo ultramarino, destacando a atuação de
seus principais personagens e
também algumas instituições
criadas aqui por eles, como o jornal anti-salazarista "Portugal Democrático" e a editora de livros
infantis Giroflé.
De modo apropriado, o volume é organizado conjuntamente
por um brasileiro, o arquiteto e
professor universitário Rui Moreira Leite, e um português, o
poeta, fotógrafo e artista plástico
Fernando Lemos.
Os textos reunidos -alguns
inéditos, outros publicados originalmente em revistas acadêmicas ou em livros portugueses-
são também de natureza variada.
Predominam os depoimentos
pessoais de quem conviveu com
os intelectuais em questão (como
o do historiador Jobson de Arruda sobre seu mestre português
Barradas de Carvalho) e os artigos que procuram sintetizar sua
contribuição à cultura brasileira
e universal. É o caso, entre outros, do texto da ensaísta e professora de literatura Leyla Perrone-Moisés sobre o crítico literário Adolfo Casais Monteiro.
De acordo com Rui Moreira
Leite, a idéia do livro surgiu como desdobramento da mostra
organizada para acompanhar o
Congresso Internacional "Sinais
de Jorge de Sena", realizado em
Araraquara em 1998.
"Listamos nomes de intelectuais que estavam representados
na exposição e de outros que fomos lembrando. Formamos um
conselho editorial para sugerir
colaboradores e homenageados", diz Moreira Leite.
Trata-se de dois elencos de peso. O dos homenageados inclui
poetas-críticos como Jorge de Sena e Ernesto de Melo e Castro,
ensaístas como Casais Monteiro
e Eduardo Lourenço, historiadores como Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa e Barradas de Carvalho, cientistas sociais como
Agostinho da Silva e muitos outros.
No time dos colaboradores estão, por exemplo, Antonio Candido, Walnice Nogueira Galvão e
Wilson Martins, além da citada
Leyla Perrone-Moisés e dos organizadores Rui Moreira Leite e
Fernando Lemos.
Este último, aliás, comparece
como autor (escreve sobre a editora Giroflé) e tema (abordado
por Mauricio Mattos).
A gama de assuntos coberta pela benfazeja invasão portuguesa é
inesgotável. Vai desde os estudos
afro-brasileiros (Agostinho da
Silva) até a poesia concreta (Melo
e Castro), passando pela leitura
crítica da obra de Gilberto Freyre
(Edu ardo Lourenço) e pelo estudo dos árcades mineiros (Rodrigues Lapa).
Do mesmo modo, foi vasto o
território geográfico ocupado
pelos visitantes e/ou imigrantes
lusos. Sua ação cultural deitou
raízes sobretudo em São Paulo,
Bahia, Pernambuco e Minas Gerais.
Um aspecto subsidiário, mas
particularmente interessante do
livro é a marca da experiência
brasileira no pensamento e na
obra dos intelectuais d'além-mar
aqui aportados.
Dois exemplos são curiosos.
Quando lecionava na Universidade da Bahia, no final dos anos
50, Eduardo Lourenço foi abordado por um jovem e irrequieto
estudante que lhe jogou nas
mãos o romance "Grande Sertão:
Veredas", dizendo: "Professor,
para conhecer o Brasil, o senhor
precisa ler este livro". O estudante era Glauber Rocha.
Lourenço, hoje tido como um
dos maiores ensaístas da língua
portuguesa, acabou se tornando
um estudioso apaixonado da
obra de Guimarães Rosa.
O outro caso é relatado no livro
por Ernesto de Melo e Castro, em
depoimento a Benjamin Abdala
Júnior. Segundo o poeta, em sua
primeira passagem pelo Rio, nos
anos 60, ele assistiu a um show de
Paulinho da Viola e se apaixonou
pela música brasileira.
"E comprei muitos discos de
MPB (Chico Buarque, Elis Regina, Nara Leão e muitos outros)
que constituíram a iniciação musical brasileira da minha filha Eugénia, então com 8 anos de idade,
cujos resultados ainda hoje perduram na sua carreira de cantora
internacional."
Melo e Castro, que vive em São
Paulo, é há quatro décadas um
grande interlocutor de Haroldo
de Campos e dos concretos.
O tema não tem fim. O próprio
Moreira Leite afirma que o livro
está longe de esgotá-lo. "Há um
trabalho gigantesco a ser feito.
Muita coisa importante ficou de
fora." Ele lamenta especialmente
duas lacunas: a do grupo de matemáticos portugueses que se fixou no Recife, liderado por Rui
Luís Gomes, e a do poeta João
Apolinário, cuja viúva só foi encontrada pelos organizadores
quando o livro já estava pronto.
Fica o convite -e o desafio-
para outras obras semelhantes.
Avaliação:
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