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WALTER SALLES
Borges, Mona Hatoum e as novas fronteiras de Gaza
De todas as notícias da semana, a que mais chamou minha atenção ocorreu nos 40 km
da rodovia Salahadin, em Gaza.
A estrada liga Israel ao Egito, e
corre em paralela ao Mediterrâneo. Graças aos acordos iniciais
entre israelenses e palestinos, Salahadin mudou de mãos. O que
foi uma terra de ninguém durante os últimos dois anos transformou-se da noite para o dia em
uma área de tráfego intenso.
Pela primeira vez, o time de futebol do campo de refugiados palestinos de Rafah pegou a estrada
para ir competir em Gaza. Hussam, um menino de 16 anos, subiu em seu skate e partiu em direção ao Egito. Centenas de pessoas
tomaram a rodovia para rever ou
conhecer parentes.
Fronteiras e limites territoriais
estão se redefinindo -mais uma
vez. Esse estado de mutação me
fez lembrar de um pequeno texto
de Borges publicado em "Atlas", o
livro que o escritor argentino fez
junto com sua companheira Maria Kodama. Aconteceu durante
uma visita de Borges e Kodama
ao Egito.
"A uns 500 metros de uma pirâmide, me inclinei, tomei um punhado de areia, deixei-a cair silenciosamente um pouco mais
além e pensei: estou modificando
o Sahara", escreveu Borges.
Cada pessoa, cada gesto pode
alterar a geografia em que vivemos, parece dizer o velho mestre.
Como no mapa-múndi criado pela artista plástica palestina Mona
Hatoum, feito com bolas de gude
espalhadas em um chão de madeira: quando se anda em volta
dessa instalação, a vibração dos
pés das pessoas modifica os contornos e as fronteiras dos países.
As bolas de gude -as fronteiras- se movem, e a fragilidade
desses limites definidos pelos homens ao longo dos séculos fica
aparente.
Desde que a Terra foi mapeada
pela primeira vez pelo grego Milet, seis séculos antes de Cristo, as
fronteiras e os limites entre países
não deixaram de mudar. A percepção do mundo, também. A
Terra acabava nos limites conhecidos até então pelos helênicos.
Além do oceano, nesse primeiro
mapa, havia apenas o vazio.
A definição dos direitos territoriais entre israelenses e palestinos
é uma questão de imensa complexidade, tanto do ponto de vista
geográfico quanto histórico. Não
há, talvez, lugar em que essa complexidade fica tão evidente quanto em Jerusalém. Lá, tem-se a impressão de que as fronteiras da cidade não são somente horizontais. Cada pedra está assentada
sobre outras lapidadas ao longo
do tempo por civilizações diferentes - judaica, islâmica, cristã. O
passado é de todos e não é exclusivamente de ninguém. O que pode
ocorrer nesse acordo costurado
-mais uma vez- pelos norte-americanos. Para quem assistiu a
Shimon Peres, Yitzhak Rabin e
Iasser Arafat ganharem o Prêmio
Nobel, em 1994, por uma paz que
nunca ocorreu, o ceticismo é de rigor. Mas, por mais incrédulo que
se seja, é inegável que algo se modifica.
Mahmoud mora à beira da rodovia Salahadin. Mais precisamente, perto de um entroncamento que os israelenses chamam
de "A Junção de Nazaré", e os palestinos de "A praça dos Mártires". "Hoje é a primeira vez em
anos que dormi sem ouvir um tiroteio", disse.
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