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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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WALTER SALLES

Borges, Mona Hatoum e as novas fronteiras de Gaza

De todas as notícias da semana, a que mais chamou minha atenção ocorreu nos 40 km da rodovia Salahadin, em Gaza. A estrada liga Israel ao Egito, e corre em paralela ao Mediterrâneo. Graças aos acordos iniciais entre israelenses e palestinos, Salahadin mudou de mãos. O que foi uma terra de ninguém durante os últimos dois anos transformou-se da noite para o dia em uma área de tráfego intenso.
Pela primeira vez, o time de futebol do campo de refugiados palestinos de Rafah pegou a estrada para ir competir em Gaza. Hussam, um menino de 16 anos, subiu em seu skate e partiu em direção ao Egito. Centenas de pessoas tomaram a rodovia para rever ou conhecer parentes.
Fronteiras e limites territoriais estão se redefinindo -mais uma vez. Esse estado de mutação me fez lembrar de um pequeno texto de Borges publicado em "Atlas", o livro que o escritor argentino fez junto com sua companheira Maria Kodama. Aconteceu durante uma visita de Borges e Kodama ao Egito.
"A uns 500 metros de uma pirâmide, me inclinei, tomei um punhado de areia, deixei-a cair silenciosamente um pouco mais além e pensei: estou modificando o Sahara", escreveu Borges.
Cada pessoa, cada gesto pode alterar a geografia em que vivemos, parece dizer o velho mestre. Como no mapa-múndi criado pela artista plástica palestina Mona Hatoum, feito com bolas de gude espalhadas em um chão de madeira: quando se anda em volta dessa instalação, a vibração dos pés das pessoas modifica os contornos e as fronteiras dos países. As bolas de gude -as fronteiras- se movem, e a fragilidade desses limites definidos pelos homens ao longo dos séculos fica aparente.
Desde que a Terra foi mapeada pela primeira vez pelo grego Milet, seis séculos antes de Cristo, as fronteiras e os limites entre países não deixaram de mudar. A percepção do mundo, também. A Terra acabava nos limites conhecidos até então pelos helênicos. Além do oceano, nesse primeiro mapa, havia apenas o vazio.
A definição dos direitos territoriais entre israelenses e palestinos é uma questão de imensa complexidade, tanto do ponto de vista geográfico quanto histórico. Não há, talvez, lugar em que essa complexidade fica tão evidente quanto em Jerusalém. Lá, tem-se a impressão de que as fronteiras da cidade não são somente horizontais. Cada pedra está assentada sobre outras lapidadas ao longo do tempo por civilizações diferentes - judaica, islâmica, cristã. O passado é de todos e não é exclusivamente de ninguém. O que pode ocorrer nesse acordo costurado -mais uma vez- pelos norte-americanos. Para quem assistiu a Shimon Peres, Yitzhak Rabin e Iasser Arafat ganharem o Prêmio Nobel, em 1994, por uma paz que nunca ocorreu, o ceticismo é de rigor. Mas, por mais incrédulo que se seja, é inegável que algo se modifica.
Mahmoud mora à beira da rodovia Salahadin. Mais precisamente, perto de um entroncamento que os israelenses chamam de "A Junção de Nazaré", e os palestinos de "A praça dos Mártires". "Hoje é a primeira vez em anos que dormi sem ouvir um tiroteio", disse.


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