|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOÃO PEREIRA COUTINHO
Escravos, mas vencedores
A seleção de Portugal joga miseravelmente, mas acumula vitórias, então ser medíocre compensa
ATERREI EM São Paulo no ano
passado em pleno mensalão.
E uma frase era repetida por
toda a gente, a propósito de Roberto
Jefferson, o delator do esquema que,
opinião pessoal, passou ao lado de
uma grande carreira nos palcos: ele
"roubava, mas falava". E havia nessa
sentença uma sombra de elogio que,
naturalmente, desculpava qualquer
erro. Roubar (mas falar) merecia um
aplauso.
Recordo essas palavras com a
equipe portuguesa na Copa. Então
leio os jornais do meu país e, tirando
dois ou três lunáticos, entre os quais
me incluo, a opinião é unânime: Portugal joga mal, mas ganha. Claro que
existe aqui um eufemismo: Portugal
não joga mal; Portugal joga miseravelmente. Mas, pelo menos, acumulou cinco vitórias (e cinco exibições
medíocres) que, Deus seja louvado,
podem mesmo levar a equipe à final.
Basta, para tanto, que a mediocridade continue. Eis uma bela lição de
moral para ensinar às crianças: ser
medíocre compensa.
Talvez compense. Mas não para
mim. Justiça, como diriam os clássicos, é dar a cada um aquilo que ele
merece? Então nenhum cavalheiro
deveria tolerar essa injustiça. Falo
de Portugal, mas poderia falar da
Itália. Uma mistura de sadomasoquismo e fascismo táticos não deveria ser premiada com vitórias. Mas
com derrotas. Mas com vexames.
Infelizmente, a minha cruzada é
uma cruzada solitária. Ouço Scolari,
um homem sério e trabalhador, e
dou por mim a tremer. Scolari, o responsável por essa nova mentalidade, afirma em tom irônico que as
equipes com melhor futebol já foram para casa. Uma pessoa quase
acredita que Scolari gosta de mau futebol, jogado por más equipes, desde
que o resultado seja bom.
E, no entanto, houve tempos. Sim,
houve tempos em que era uma delícia ver um jogo de Portugal. Nenhuma vitória nas Copas? Fato. Mas havia uma alegria pelo jogo e um talento natural dos jogadores que, perante esquemas táticos rigorosos (e
vencedores), proporcionava espetáculo: o espetáculo próprio do abuso.
Aliás, não apenas Portugal: com o
Brasil era a mesma coisa. Em 2002,
o Brasil venceu a Copa com Scolari,
produzindo jogos sofríveis que deveriam cobrir de vergonha qualquer
brasileiro civilizado. Em contrapartida, jamais esquecerei o Brasil de
1982, ou de 1986, e sua inesquecível
formação. Zico, Sócrates ou Falcão
são a minha idéia de vitória. Apesar
de não ter havido nenhuma.
Um romântico? Talvez seja. E no
verdadeiro sentido do termo: o culto
do "eu", uma herança dos românticos à descendência, pode ter produzido excessos subjetivistas que, a
prazo, conduziram a Europa para
desastres políticos. Mas o movimento romântico e a sua feroz oposição
ao iluminismo "dix-huitième" deixaram uma lição maior: às vezes, é
preferível um fracasso nobre do que
uma vitória pífia. Porque os resultados nada valem quando o processo
nada vale.
Que o futebol moderno tenha esquecido essa saudável herança, eis
um pormenor que não espanta: as
nossas próprias vidas, obcecadas
por sucesso, são o retrato triste da
escravidão informal em que fomos
mergulhando sem retorno.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: São Paulo terá sua primeira sala de cinema em 3D Índice
|