São Paulo, quarta-feira, 05 de julho de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Escravos, mas vencedores

A seleção de Portugal joga miseravelmente, mas acumula vitórias, então ser medíocre compensa

ATERREI EM São Paulo no ano passado em pleno mensalão.
E uma frase era repetida por toda a gente, a propósito de Roberto Jefferson, o delator do esquema que, opinião pessoal, passou ao lado de uma grande carreira nos palcos: ele "roubava, mas falava". E havia nessa sentença uma sombra de elogio que, naturalmente, desculpava qualquer erro. Roubar (mas falar) merecia um aplauso.
Recordo essas palavras com a equipe portuguesa na Copa. Então leio os jornais do meu país e, tirando dois ou três lunáticos, entre os quais me incluo, a opinião é unânime: Portugal joga mal, mas ganha. Claro que existe aqui um eufemismo: Portugal não joga mal; Portugal joga miseravelmente. Mas, pelo menos, acumulou cinco vitórias (e cinco exibições medíocres) que, Deus seja louvado, podem mesmo levar a equipe à final.
Basta, para tanto, que a mediocridade continue. Eis uma bela lição de moral para ensinar às crianças: ser medíocre compensa.
Talvez compense. Mas não para mim. Justiça, como diriam os clássicos, é dar a cada um aquilo que ele merece? Então nenhum cavalheiro deveria tolerar essa injustiça. Falo de Portugal, mas poderia falar da Itália. Uma mistura de sadomasoquismo e fascismo táticos não deveria ser premiada com vitórias. Mas com derrotas. Mas com vexames.
Infelizmente, a minha cruzada é uma cruzada solitária. Ouço Scolari, um homem sério e trabalhador, e dou por mim a tremer. Scolari, o responsável por essa nova mentalidade, afirma em tom irônico que as equipes com melhor futebol já foram para casa. Uma pessoa quase acredita que Scolari gosta de mau futebol, jogado por más equipes, desde que o resultado seja bom.
E, no entanto, houve tempos. Sim, houve tempos em que era uma delícia ver um jogo de Portugal. Nenhuma vitória nas Copas? Fato. Mas havia uma alegria pelo jogo e um talento natural dos jogadores que, perante esquemas táticos rigorosos (e vencedores), proporcionava espetáculo: o espetáculo próprio do abuso. Aliás, não apenas Portugal: com o Brasil era a mesma coisa. Em 2002, o Brasil venceu a Copa com Scolari, produzindo jogos sofríveis que deveriam cobrir de vergonha qualquer brasileiro civilizado. Em contrapartida, jamais esquecerei o Brasil de 1982, ou de 1986, e sua inesquecível formação. Zico, Sócrates ou Falcão são a minha idéia de vitória. Apesar de não ter havido nenhuma.
Um romântico? Talvez seja. E no verdadeiro sentido do termo: o culto do "eu", uma herança dos românticos à descendência, pode ter produzido excessos subjetivistas que, a prazo, conduziram a Europa para desastres políticos. Mas o movimento romântico e a sua feroz oposição ao iluminismo "dix-huitième" deixaram uma lição maior: às vezes, é preferível um fracasso nobre do que uma vitória pífia. Porque os resultados nada valem quando o processo nada vale.
Que o futebol moderno tenha esquecido essa saudável herança, eis um pormenor que não espanta: as nossas próprias vidas, obcecadas por sucesso, são o retrato triste da escravidão informal em que fomos mergulhando sem retorno.


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