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Trio para vozes e silêncio
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Não estou de fraque, sequer
de gravata, mas nesta estréia
(ou reestréia) gostaria de trazer um pequeno aporte de cerimônia. Com algumas notas de
emoção em homenagem a três
grandes figuras da nossa cultura e do nosso jornalismo
-que já andaram juntos.
Os ingleses são mestres na arte de engalanar os procedimentos para valorizar o conteúdo por que se dão ao respeito. Os chineses também, porque trabalham com grandes
escalas, de tempo e gente. Do
que resultou a grande encenação de Hong Kong -uma devolução territorial desta importância, há 50 anos, só se faria com canhões em vez de fogos de artifício.
Solenidade não é matéria exclusiva dos impérios recentes:
minhas peregrinações parabólicas pela RTPi para matar as
saudades de Portugal confirmam o que observei: nossos irmãos d'além-mar levam-se a
sério. E isso faz-lhes um enorme bem.
Sucedo (no dia, não no lugar) a Antonio Callado, contratado por esta Folha após a
morte de Otto Lara Resende
(mas não para substituí-lo).
Dois magníficos cariocas, embora Callado fosse de Niterói, e
Otto, de São João del-Rei, representantes de um cosmopolitismo que sempre foi a marca
do Rio e, espero, continue a
sê-lo.
Cheguei a este jornal exatamente há 22 anos (efemérides
também são formas de solenizar o cotidiano), trazido por
Cláudio Abramo, que começava naqueles dias a montar
uma formidável operação jornalística -seguramente a
mais espetacular deste último
terço de século.
Trabalhei ao lado de dois deles, Callado e Otto, fui comandado por Abramo. Pauta para
um novo Plutarco seria a de
desenhar essas vidas paralelas.
Callado, pouco mais velho, de
1917, Otto, de 1922, e Cláudio,
de 1923, são expoentes do
"jornalismo superior", expressão de Álvaro Lins utilizada por Otto num de seus artigos-aula nesta Folha
(3/8/92).
Guardo, como testemunha,
alguns episódios em que, a despeito das diferenças de formação e estilo, demonstraram a
mesma determinação, grandeza e, principalmente, sobriedade. Deve constar do repertório
de atributos do "homem moderno" o que antes rotulava-se como elegância moral.
Os três a ostentam de forma
exemplar.
Os politicamente corretos
que me perdoem, mas a palavra exata é fundamental -vejo-os como aristocratas, o que
não os impediu de serem também militantes e veementes.
Nunca estridentes. Essa é uma
nuance para ser referida num
ambiente como o nosso, em
que as "pensatas" em geral
descambam em "gritatas" e
tantos eventos simultâneos
destinados à reflexão acabam
por produzir ruído ensurdecedor.
Aqui entra em cena um italiano chamado Umberto Eco,
com o seu número preferido:
surpreender. Com a originalidade habitual traz-nos "Cinque Scritti Morali". E, logo no
primeiro ensaio, convoca os
intelectuais para um "ato responsável" e um pacto insólito
-calar. Recusar a sedução da
mídia para produzir diagnósticos afoitos de modo que suas
intervenções tenham mais
consistência e eles próprios
deixem de ser "objetos de consumo" por parte dos leitores
("Jornal do Brasil",
"Idéias", 28/6).
Fácil supor que a fragmentação do atual quadro político e
cultural italiano e, sobretudo,
a torrencial retórica peninsular contribuíram para espicaçar a proclamação. O que nos
leva a concluir que Eco -pouco dado aos solilóquios a "sotto voce"- está reclamando
mais esmero e afinco dos colegas na atuação fora do claustro acadêmico.
Fica em aberto o processo
que levou o irrequieto medievalista e semiólogo a fazer a
singular proposição em plena
Era da Informação (que a megalivraria paulistana, recém-inaugurada, já quer transformar em Era do Conhecimento).
Lícito adivinhar que Eco, dono de uma sólida bagagem histórica, na elaboração desse escrito moral, considerou o quietismo (corrente mística contemplativa que premiava o
prazer interior), originário da
Espanha seiscentista. Criado
pelo monge Miguel de Molinos,
o movimento irradiou-se pelos
conventos ibéricos e tomou de
assalto a corte de Versalhes em
plena exuberância do catolicismo barroco.
Nossa conjuntura difere da
italiana, talvez seja até mais
promissora, mas o raciocínio
de Eco não é impertinente.
Com um mínimo de afinco, zelo e esmero, tudo ganharia
maior dimensão e ressonância.
Até para sobrepor-se ao oco e
vão.
Callado, ao completar os 80
anos, pouco antes de morrer,
declarou que era mais afeiçoado a "Reflexos do Baile", o
romance menos evidente e
"político" de um artista tido
como paradigma de engajamento. Engenharia sutil, tocada em tom menor, a serviço de
uma trama maior. Reli, há
pouco, o seu texto em "Os Idos
de Março" (obra coletiva, prefaciada por Otto Lara, primeiro livro sobre o golpe de 1964,
publicado 60 dias depois).
Jóia de jornalismo literário
-precisa, parcimoniosa, melancólica e, por isso, arrasadora sobre o protagonista de uma
tragédia que, como todas, começava quase sem sangue:
Jango. Pouco depois do lançamento, era detido porque participara de um "sit-in" contra a ditadura, diante do hotel
Glória, no Rio.
Otto, cuja obra ficcional só
agora pode ser descortinada
(porque em vida a manteve
quase clandestina), expandiu-se em dois gêneros literários quase em extinção -o
epistolar e o coloquial. Mais do
que Mário de Andrade e talvez
um pouco menos do que D.
Francisco Manoel de Mello (o
polígrafo seiscentista português que se gabava de ter escrito 22 mil cartas), Otto esbanjava em cartas e conversas (com
preferência por aquelas) preciosas porções de inspiração,
energia, verve, calor humano e
sabedoria. Sem arrepender-se
dessa incontinência, o que o
zeloso Eco jamais reprovaria.
Cláudio Abramo, como artista plástico, pressentindo onde
desaguaria o atual experimentalismo das "intervenções" e
performances, encerrou uma
carreira promissora. No jornalismo (que chamava de exercício cotidiano de caráter), chegou a "chef d'orchestre".
Aqui, o "régisseur" não sobe
ao pódio, mas se irradia dos
bastidores, transferindo para
os executantes o melhor de si.
Fez dele não apenas um brilhante fazedor de jornais, mas
um carismático mobilizador
de talentos.
Tinham voz, jamais a preservaram para proteger-se, mas
também possuíam o dom de
dizer não dizendo, eloquência
interiorizada que resulta sempre numa economia de palavras e riquíssimo acervo de
gestos inequívocos. Trio afinadíssimo. Engendrou-se no humanismo do Renascimento,
temperou-se no Iluminismo,
ganhou ressonância no romantismo e chega intacto a esta estranha véspera de milênio, em que tanta ira sagrada
acaba profanando o silêncio.
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