São Paulo, sábado, 5 de julho de 1997.



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Trio para vozes e silêncio

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Não estou de fraque, sequer de gravata, mas nesta estréia (ou reestréia) gostaria de trazer um pequeno aporte de cerimônia. Com algumas notas de emoção em homenagem a três grandes figuras da nossa cultura e do nosso jornalismo -que já andaram juntos.
Os ingleses são mestres na arte de engalanar os procedimentos para valorizar o conteúdo por que se dão ao respeito. Os chineses também, porque trabalham com grandes escalas, de tempo e gente. Do que resultou a grande encenação de Hong Kong -uma devolução territorial desta importância, há 50 anos, só se faria com canhões em vez de fogos de artifício.
Solenidade não é matéria exclusiva dos impérios recentes: minhas peregrinações parabólicas pela RTPi para matar as saudades de Portugal confirmam o que observei: nossos irmãos d'além-mar levam-se a sério. E isso faz-lhes um enorme bem.
Sucedo (no dia, não no lugar) a Antonio Callado, contratado por esta Folha após a morte de Otto Lara Resende (mas não para substituí-lo). Dois magníficos cariocas, embora Callado fosse de Niterói, e Otto, de São João del-Rei, representantes de um cosmopolitismo que sempre foi a marca do Rio e, espero, continue a sê-lo.
Cheguei a este jornal exatamente há 22 anos (efemérides também são formas de solenizar o cotidiano), trazido por Cláudio Abramo, que começava naqueles dias a montar uma formidável operação jornalística -seguramente a mais espetacular deste último terço de século.
Trabalhei ao lado de dois deles, Callado e Otto, fui comandado por Abramo. Pauta para um novo Plutarco seria a de desenhar essas vidas paralelas. Callado, pouco mais velho, de 1917, Otto, de 1922, e Cláudio, de 1923, são expoentes do "jornalismo superior", expressão de Álvaro Lins utilizada por Otto num de seus artigos-aula nesta Folha (3/8/92).
Guardo, como testemunha, alguns episódios em que, a despeito das diferenças de formação e estilo, demonstraram a mesma determinação, grandeza e, principalmente, sobriedade. Deve constar do repertório de atributos do "homem moderno" o que antes rotulava-se como elegância moral. Os três a ostentam de forma exemplar.
Os politicamente corretos que me perdoem, mas a palavra exata é fundamental -vejo-os como aristocratas, o que não os impediu de serem também militantes e veementes. Nunca estridentes. Essa é uma nuance para ser referida num ambiente como o nosso, em que as "pensatas" em geral descambam em "gritatas" e tantos eventos simultâneos destinados à reflexão acabam por produzir ruído ensurdecedor.
Aqui entra em cena um italiano chamado Umberto Eco, com o seu número preferido: surpreender. Com a originalidade habitual traz-nos "Cinque Scritti Morali". E, logo no primeiro ensaio, convoca os intelectuais para um "ato responsável" e um pacto insólito -calar. Recusar a sedução da mídia para produzir diagnósticos afoitos de modo que suas intervenções tenham mais consistência e eles próprios deixem de ser "objetos de consumo" por parte dos leitores ("Jornal do Brasil", "Idéias", 28/6).
Fácil supor que a fragmentação do atual quadro político e cultural italiano e, sobretudo, a torrencial retórica peninsular contribuíram para espicaçar a proclamação. O que nos leva a concluir que Eco -pouco dado aos solilóquios a "sotto voce"- está reclamando mais esmero e afinco dos colegas na atuação fora do claustro acadêmico.
Fica em aberto o processo que levou o irrequieto medievalista e semiólogo a fazer a singular proposição em plena Era da Informação (que a megalivraria paulistana, recém-inaugurada, já quer transformar em Era do Conhecimento).
Lícito adivinhar que Eco, dono de uma sólida bagagem histórica, na elaboração desse escrito moral, considerou o quietismo (corrente mística contemplativa que premiava o prazer interior), originário da Espanha seiscentista. Criado pelo monge Miguel de Molinos, o movimento irradiou-se pelos conventos ibéricos e tomou de assalto a corte de Versalhes em plena exuberância do catolicismo barroco.
Nossa conjuntura difere da italiana, talvez seja até mais promissora, mas o raciocínio de Eco não é impertinente. Com um mínimo de afinco, zelo e esmero, tudo ganharia maior dimensão e ressonância. Até para sobrepor-se ao oco e vão.
Callado, ao completar os 80 anos, pouco antes de morrer, declarou que era mais afeiçoado a "Reflexos do Baile", o romance menos evidente e "político" de um artista tido como paradigma de engajamento. Engenharia sutil, tocada em tom menor, a serviço de uma trama maior. Reli, há pouco, o seu texto em "Os Idos de Março" (obra coletiva, prefaciada por Otto Lara, primeiro livro sobre o golpe de 1964, publicado 60 dias depois).
Jóia de jornalismo literário -precisa, parcimoniosa, melancólica e, por isso, arrasadora sobre o protagonista de uma tragédia que, como todas, começava quase sem sangue: Jango. Pouco depois do lançamento, era detido porque participara de um "sit-in" contra a ditadura, diante do hotel Glória, no Rio.
Otto, cuja obra ficcional só agora pode ser descortinada (porque em vida a manteve quase clandestina), expandiu-se em dois gêneros literários quase em extinção -o epistolar e o coloquial. Mais do que Mário de Andrade e talvez um pouco menos do que D. Francisco Manoel de Mello (o polígrafo seiscentista português que se gabava de ter escrito 22 mil cartas), Otto esbanjava em cartas e conversas (com preferência por aquelas) preciosas porções de inspiração, energia, verve, calor humano e sabedoria. Sem arrepender-se dessa incontinência, o que o zeloso Eco jamais reprovaria.
Cláudio Abramo, como artista plástico, pressentindo onde desaguaria o atual experimentalismo das "intervenções" e performances, encerrou uma carreira promissora. No jornalismo (que chamava de exercício cotidiano de caráter), chegou a "chef d'orchestre". Aqui, o "régisseur" não sobe ao pódio, mas se irradia dos bastidores, transferindo para os executantes o melhor de si. Fez dele não apenas um brilhante fazedor de jornais, mas um carismático mobilizador de talentos.
Tinham voz, jamais a preservaram para proteger-se, mas também possuíam o dom de dizer não dizendo, eloquência interiorizada que resulta sempre numa economia de palavras e riquíssimo acervo de gestos inequívocos. Trio afinadíssimo. Engendrou-se no humanismo do Renascimento, temperou-se no Iluminismo, ganhou ressonância no romantismo e chega intacto a esta estranha véspera de milênio, em que tanta ira sagrada acaba profanando o silêncio.



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