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São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2003

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BERNARDO CARVALHO

As obrigações do desejo

Takeshi Kitano se inspirou no "bunraku", o tradicional teatro de bonecos do Japão, para fazer seu filme "Dolls". No romance "Há Quem Prefira Urtigas" (Companhia das Letras), de Junichiro Tanizaki (1886-1965), um casal à beira do divórcio é convidado pelo pai da mulher para assistir a uma sessão de "bunraku" -e durante todo o espetáculo, que conta a história de um casal de suicidas apaixonados, marido e mulher precisam representar diante do velho a farsa do seu casamento.
A peça a que estão assistindo, "Os Amantes Suicidas em Amijima", é considerada a obra-prima de Chikamatsu Monzaemon (1653-1725), o grande dramaturgo do teatro de bonecos japonês, um autor que costuma ser comparado a Shakespeare, na falta de uma melhor definição aos olhos do Ocidente.
Nas célebres tragédias "domésticas" de Chikamatsu, os protagonistas são vítimas do desejo e só pelo desejo se redimem. É a fraqueza da carne que lhes dá grandeza. E o teatro de bonecos só reforça essa idéia, como se houvesse uma sintonia perfeita entre o conteúdo das peças (o suicídio dos amantes -Chikamatsu escreveu algumas variações sobre o tema) e a forma (o "bunraku").
Os bonecos são manipulados por forças exteriores (os atores). Sozinhos, não passariam de corpos inertes, inanimados. O ator no "bunraku" (os bonecos são manipulados por três atores vestidos de preto, à vista da platéia, além de um narrador) é a encarnação do desejo.
Um dos elementos dramáticos recorrentes nessas peças é o "michiyuki", a viagem dos amantes para a morte, símbolo de sua entrega ao desejo e da prevalência do desejo sobre todas as coisas (a longa jornada dos amantes amarrados, em "Dolls", por exemplo). O "michiyuki" é um momento onírico (por oposição ao realismo que o precede) em que o autor descreve seus personagens e o espectador finalmente simpatiza com eles e entende seus atos. É o ritual pelo qual recuperam a dignidade perdida.
O mais extraordinário -e estranho aos olhos ocidentais-, no entanto, é a moral por trás dessas peças. Uma moral em que desejo e obrigação só estão em oposição num nível superficial, em aparência, pois no fundo são curiosamente complementares.
Em "Os Amantes Suicidas em Amijima" (as principais peças de Chikamatsu foram traduzidas para o inglês por Donald Keene), um comerciante casado e pai de dois filhos pequenos se apaixona por uma prostituta e gasta todas as economias com ela. Assume dívidas e negligencia a família sem conseguir, entretanto, juntar o dinheiro necessário para pagar o resgate que libertará a amante do prostíbulo. Os dois decidem se matar.
A estranha combinação entre o desejo e as obrigações tem início quando a mulher do comerciante, suspeitando do pacto suicida, escreve uma carta à prostituta, implorando pela vida do marido. A partir daí se estabelece uma série de compromissos e responsabilidades mútuos entre as duas mulheres que não só não evita o suicídio mas termina por lhe dar uma lógica e uma justificativa que antes ele não tinha, refazendo em novos termos a ligação antes restrita e insondável da paixão.
Ao assumir o compromisso que lhe pede a carta da mulher do comerciante, a prostituta finge ter se desinteressado do amante e planeja em silêncio se matar sozinha. Para salvar a vida da prostituta, que honradamente cedeu o amor para cumprir o que lhe pedia a carta, a mulher do comerciante agora se sente na obrigação de revelar a história ao marido e se propõe até mesmo a contribuir com as roupas da família para resgatá-la do prostíbulo.
De repente, marido e mulher estão no mesmo campo, passam a desejar a mesma coisa. É ela que, pedindo que um salve o outro da morte, por fim reúne o marido e a prostituta no suicídio apaixonado que tentava evitar. Ao lhe escrever a carta, a mulher desencadeia um sistema de obrigações, passa a dever um favor à prostituta, e é essa engrenagem trágica que termina por fazer cumprir o desígnio inicial do desejo, só que agora dando um sentido cultural ao que antes era só o caos incompreensível da paixão.
Já não é o acaso que dá início à tragédia (como em "Édipo Rei"), mas uma cadeia de compromissos inaugurada por um ato cujo objetivo inconsciente é dar um sentido ritual ao que originalmente não tem nenhum sentido (o desejo, a paixão, a morte) e não pode ser evitado.
O mesmo acontece em "Dolls": é a obrigação do rapaz para com a moça que tentou se matar por ele que o faz renovar o desejo e passar a viver atado a ela, como se o desejo só pudesse se realizar pela obrigação, e por isso precisasse antes ser rompido para em seguida ser reatado como uma questão de honra.
Quando na peça de Chikamatsu o comerciante e a prostituta chegam por fim ao local do suicídio, ela o exorta a ir morrer longe dela, por um "sentido de decência", para que não se configure um suicídio de amor. Na hora da morte, o que mais a preocupa é não quebrar o compromisso que havia assumido com a mulher dele, no início, ao acatar o pedido da carta. Por mais estranho que pareça, o suicídio passa a ser, mais do que um ato desesperado, uma forma de trazer a morte da natureza para a cultura, e de lhe dar uma razão civilizadora.

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