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CARLOS HEITOR CONY
Biografia de um esforçado idealista
É um homem esforçado, tão
esforçado que, num esforço
de boa vontade para consigo próprio, julga-se idealista. E do ideal,
segundo pensa, retira toda a sua
força, daí que se pode considerá-lo um esforçado idealista.
Se em sua mocidade uma cartomante, ou ele próprio, houvesse
previsto que chegaria aonde chegou, teria metido uma bala na cabeça ou se exilado no Tibete, tornando-se monge de alguma seita
alternativa. Foi, como todos os jovens de sua geração, uma autêntica e irritada vocação antiacadêmica. Jogado na luta mais cedo
do que esperava, aos 18 anos teve
de imprimir rumos à própria vida. E imprimir rumos à vida, em
seu tempo e circunstância, significava tentar simultaneamente o
jornalismo e a faculdade de direito. Saiu-se mediocremente nas
duas opções: arranjou conhecimentos no jornalismo e um diploma de bacharel na faculdade.
Naquele tempo já era esforçado
e idealista -qualidades que permaneceriam em sua vida e marcariam sua personalidade. Em
seu futuro epitáfio, na futura oração fúnebre que lhe acompanhar
o corpo à sepultura, sua passagem
pela vida terrestre poderá ser consagrada com duas palavras: "Esforço - Ideal".
Não tendo talento específico para nada -a não ser o de esforçar-se para se tornar idealista-, não
tendo nem sequer talento, limitou-se a explorar, em proveito
próprio, o esforço em tornar-se
idealista. Encontrou, na faculdade, um ninho de gênios em fecundação que só precisavam de um
mínimo de organização e um máximo de dinheiro para abalarem
o mundo e a sociedade.
Ele não tinha, pessoalmente,
nenhum interesse especial em fazer o mundo ou a sociedade tremerem. Mas gostaria de ser admitido naquela sociedade onde só os
gênios -os evidentes gênios de
sua geração- tinham entrada.
Sabendo fazer muitas coisas na
medida em que nada fazia de
aproveitável, foi admitido na sociedade dos futuros libertadores
da sociedade humana como elemento disposto a fazer tudo aquilo que outros não sabiam nem
gostavam de fazer. Em linhas gerais, os gênios representavam o
capital, Rubens, o trabalho. Os gênios eram o rei -ele era o povo.
Habituou-se desde cedo ao trabalho, adquirindo, com o tempo,
capacidade para planejar, promover e fazer render qualquer
idéia ou qualquer falta de idéia.
Começou com o jornalzinho interno, distribuído na própria faculdade. O primeiro número
trouxe um editorial intitulado:
"A Nossa Presença". Assinado pela "Direção", clamava o editorial
contra a exploração do homem
pelo homem, contra o capitalismo, contra o mundo ocidental e
contra o Tratado de Versailles
-que, não se sabia por que, era
detestado pela comunidade. Trazia também alguns poemas e, como os poemas eram ruins, havia
um manifesto, na primeira página, explicando as razões e a importância da poesia ali publicada.
A rigor, nada entendia de nada.
A vida toda fora um idealista que
colocava seu ideal em "fazer",
deixando para outros a tarefa de
"pensar". Daí sua atração por intelectuais e artistas, gente preocupada com doutrinas, teorias, poemas e quadros, sem tempo nem
vontade para se dedicar às necessidades da existência. Bem verdade que alguns chegavam a tomar
banho, mas nem todos.
Reuniam-se em cenáculos, grupos, alas, grupelhos, facções, dissidências, passavam a noite e eventualmente o dia discutindo nomes, escolas e temas. Ele tomava
parte nas reuniões, limitando-se a
balançar a cabeça, negando ou
apoiando as opiniões dominantes. No meio da discussão, quando alguém lançava uma nova interpretação de James Joyce, ou
provava que o "Coup de Dés", de
Mallarmé, era a chave do conhecimento, o elo perdido da cultura
humana, um deles reclamava:
- Diabo, esqueci de pagar a
conta do gás!
Um outro lembrava-se de que
estava sem dinheiro e precisava
passar no escritório de alguém
para pegar um empréstimo. E a
maioria terminava fazendo a lista de pequenas obrigações, e ele,
modelo de homem esforçadamente prático, passava o resto do
dia pagando as contas de um,
apanhando o empréstimo de outro, dando recados para um terceiro e trazendo o misto-quente
para um quarto, esforçando-se
para trazer o sanduíche ainda a
tempo de justificar o "quente".
Quando regressava, era saudado com admiração. Todos prometiam que ao tomarem o poder e
instaurarem uma República autêntica, presidida por filósofos e
poetas, seguindo o modelo melhorado de Platão e Rousseau, ele seria o ministro da Fazenda.
Por causas que ele nunca entenderia, nunca chegou a ser ministro de nada, por um motivo que
também nunca entendeu: os gênios a que servira não conseguiram tomar o poder, mas foram
tomados pelo poder. Um deles
aceitou ser procurador da Prefeitura de Porciúncula, onde tanto
procurou que terminou achando
a filha de um coronel local com
quem se casou e gerou uma prole
numerosa e sifilítica.
Apesar disso, foi quem melhor
se arrumou na vida: será candidato a deputado federal no ano
que vem e já contratou o companheiro de mocidade -o esforçado idealista-, entre outras coisas, para ser o caixa dois de sua
campanha.
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