São Paulo, sexta-feira, 05 de agosto de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Biografia de um esforçado idealista

É um homem esforçado, tão esforçado que, num esforço de boa vontade para consigo próprio, julga-se idealista. E do ideal, segundo pensa, retira toda a sua força, daí que se pode considerá-lo um esforçado idealista.
Se em sua mocidade uma cartomante, ou ele próprio, houvesse previsto que chegaria aonde chegou, teria metido uma bala na cabeça ou se exilado no Tibete, tornando-se monge de alguma seita alternativa. Foi, como todos os jovens de sua geração, uma autêntica e irritada vocação antiacadêmica. Jogado na luta mais cedo do que esperava, aos 18 anos teve de imprimir rumos à própria vida. E imprimir rumos à vida, em seu tempo e circunstância, significava tentar simultaneamente o jornalismo e a faculdade de direito. Saiu-se mediocremente nas duas opções: arranjou conhecimentos no jornalismo e um diploma de bacharel na faculdade.
Naquele tempo já era esforçado e idealista -qualidades que permaneceriam em sua vida e marcariam sua personalidade. Em seu futuro epitáfio, na futura oração fúnebre que lhe acompanhar o corpo à sepultura, sua passagem pela vida terrestre poderá ser consagrada com duas palavras: "Esforço - Ideal".
Não tendo talento específico para nada -a não ser o de esforçar-se para se tornar idealista-, não tendo nem sequer talento, limitou-se a explorar, em proveito próprio, o esforço em tornar-se idealista. Encontrou, na faculdade, um ninho de gênios em fecundação que só precisavam de um mínimo de organização e um máximo de dinheiro para abalarem o mundo e a sociedade.
Ele não tinha, pessoalmente, nenhum interesse especial em fazer o mundo ou a sociedade tremerem. Mas gostaria de ser admitido naquela sociedade onde só os gênios -os evidentes gênios de sua geração- tinham entrada. Sabendo fazer muitas coisas na medida em que nada fazia de aproveitável, foi admitido na sociedade dos futuros libertadores da sociedade humana como elemento disposto a fazer tudo aquilo que outros não sabiam nem gostavam de fazer. Em linhas gerais, os gênios representavam o capital, Rubens, o trabalho. Os gênios eram o rei -ele era o povo.
Habituou-se desde cedo ao trabalho, adquirindo, com o tempo, capacidade para planejar, promover e fazer render qualquer idéia ou qualquer falta de idéia.
Começou com o jornalzinho interno, distribuído na própria faculdade. O primeiro número trouxe um editorial intitulado: "A Nossa Presença". Assinado pela "Direção", clamava o editorial contra a exploração do homem pelo homem, contra o capitalismo, contra o mundo ocidental e contra o Tratado de Versailles -que, não se sabia por que, era detestado pela comunidade. Trazia também alguns poemas e, como os poemas eram ruins, havia um manifesto, na primeira página, explicando as razões e a importância da poesia ali publicada.
A rigor, nada entendia de nada. A vida toda fora um idealista que colocava seu ideal em "fazer", deixando para outros a tarefa de "pensar". Daí sua atração por intelectuais e artistas, gente preocupada com doutrinas, teorias, poemas e quadros, sem tempo nem vontade para se dedicar às necessidades da existência. Bem verdade que alguns chegavam a tomar banho, mas nem todos.
Reuniam-se em cenáculos, grupos, alas, grupelhos, facções, dissidências, passavam a noite e eventualmente o dia discutindo nomes, escolas e temas. Ele tomava parte nas reuniões, limitando-se a balançar a cabeça, negando ou apoiando as opiniões dominantes. No meio da discussão, quando alguém lançava uma nova interpretação de James Joyce, ou provava que o "Coup de Dés", de Mallarmé, era a chave do conhecimento, o elo perdido da cultura humana, um deles reclamava:
- Diabo, esqueci de pagar a conta do gás!
Um outro lembrava-se de que estava sem dinheiro e precisava passar no escritório de alguém para pegar um empréstimo. E a maioria terminava fazendo a lista de pequenas obrigações, e ele, modelo de homem esforçadamente prático, passava o resto do dia pagando as contas de um, apanhando o empréstimo de outro, dando recados para um terceiro e trazendo o misto-quente para um quarto, esforçando-se para trazer o sanduíche ainda a tempo de justificar o "quente".
Quando regressava, era saudado com admiração. Todos prometiam que ao tomarem o poder e instaurarem uma República autêntica, presidida por filósofos e poetas, seguindo o modelo melhorado de Platão e Rousseau, ele seria o ministro da Fazenda.
Por causas que ele nunca entenderia, nunca chegou a ser ministro de nada, por um motivo que também nunca entendeu: os gênios a que servira não conseguiram tomar o poder, mas foram tomados pelo poder. Um deles aceitou ser procurador da Prefeitura de Porciúncula, onde tanto procurou que terminou achando a filha de um coronel local com quem se casou e gerou uma prole numerosa e sifilítica.
Apesar disso, foi quem melhor se arrumou na vida: será candidato a deputado federal no ano que vem e já contratou o companheiro de mocidade -o esforçado idealista-, entre outras coisas, para ser o caixa dois de sua campanha.


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