São Paulo, quinta-feira, 05 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARNALDO COHEN/CRÍTICA

As paixões da inteligência e a inteligência da paixão

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"O que importa não é ter uma idéia", dizia Brahms aos moços que vinham lhe pedir conselho. "O importante é o que fazer com ela." O mais passional dos músicos era também o mais analítico: em peças como as "Variações sobre um Tema de Haendel" (1861), inteligência e paixão se cruzam de modo tal que as distinções acabam. Como se ouviu terça-feira, na interpretação de Arnaldo Cohen, inaugurando a primeira temporada musical do Teatro Renaissance.
O preconceito antiracionalista é uma das marcas da cultura racionalista do nosso tempo. No que concerne à música, nossa tendência é bloquear a compreensão de tudo o que não vem do coração. Mas o coração tem razões que a própria razão, às vezes, não desconhece. E será que um pianista tão cultivado como Cohen não merece ser entendido em seus próprios termos?
Toda a inteligência da paixão se cruza, ali, com as paixões da inteligência -sem falar nas emoções do virtuosismo. No caso de Brahms, por excelência, o que mais importa, a idéia total e humana da música, só vai se deixando ver aos poucos, lá no fundo desses caminhos cruzados. Até chegar à grande fuga, onde não há Arnaldo Cohen que não seja revirado pelas pressões de tanta idéia e tanto sentimento. Acabou exaurido, e feliz.
Na empreitada civilizadora do pianista, seu disco recente, "Brasiliana" (BIS), tem papel especial, reunindo só compositores brasileiros, do século 18 ao 20. O repertório do disco serviu de base para a primeira parte do concerto; mas esta teve ordem própria, caracteristicamente original.
Exemplo: quatro valsas (de Luiz Levy, Gnatalli, Francisco Braga e Villa-Lobos), tocadas em bloco, compuseram uma espécie de minisonata. O "Prelúdio" de Eduardo Dutra ligou-se às neves de Henrique Oswald e depois ao "Ponteio nš 49" (homenagem a Scriabin) de Camargo Guarnieri, formando outra homenagem, em três movimentos, ao pequeno grande russo. As miniaturas foram agrupadas com tanto gosto que nem dá para pensar, agora, em escutar o próprio disco noutra ordem.
E a técnica? Técnica, para ele, parece coisa de aluno. Já deixou esse tipo de detalhe para trás. Técnica é... tocar.
Detalhe: tocar no próprio (e excelente) piano Steinway que Arnaldo Cohen carrega aonde vai, como se fosse um violino. Faz toda a diferença, quando se pensa no que ele fez ao final sonhador da "Arabesque" de Schumann, ou nas rajadas de acordes repetidos do Brahms, ou até no dó, realmente maior, da "Congada" de Mignone.
Então foi uma maravilha? Olha, para ser sincero, foi quase. Ficou faltando aquilo que só um teatro e um público e os deuses podem acrescentar à música. Mas era o primeiríssimo concerto; nem os óleos do saguão, nem as cadeiras roxas, sabiam ainda do que se trata. De qualquer modo, foi uma grande estréia. Uma grande idéia. O mais importante, daqui para a frente, é o que fazer com ela.


Avaliação:     



Texto Anterior: Viva a feijoada original
Próximo Texto: Panorâmica - Artes Plásticas: Ladrões roubam telas de Picasso e Matisse nos EUA
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.