São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2010

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Sem comer, Ebert faz livro de culinária

Há quatro anos sem poder se alimentar em decorrência de um câncer, crítico de cinema lança receitas nos EUA

"Me recordo do sabor e do cheiro de tudo, apesar de não conseguir mais sentir sabores ou cheiros", afirma

KIM SEVERSON
DO "NEW YORK TIMES"

Os primeiros minutos em um restaurante com Roger Ebert são incômodos.
Não porque você não consiga encontrar milhões de assuntos. Ebert, 68 anos, vem resenhando filmes há mais de quatro décadas. Ele estava no carro com Robert Mitchum quando o ator ficou chapado e se perdeu na rodovia da Pensilvânia. Foi dono de um carro Studebaker e é dono de um prêmio Pulitzer.
O problema é que ele não pode comer e não pode falar. Ele não o faz há quatro anos, desde que um câncer lhe tomou o maxilar e que fracassaram três tentativas de reconstruir rosto e voz.
Nos primeiros momentos à mesa, você se esforça para não olhar para o lugar antes ocupado pelo maxilar. Você se pergunta qual a sensação de receber alimentos direto no estômago, por um tubo; e se retrai quando a garçonete oferece o cardápio a Ebert e pergunta o que ele vai beber.
Mas em pouco tempo -em uma agitação de gestos, olhares, rabiscos em uma caderneta e apartes pacientes de sua mulher- Ebert está tendo uma conversa. Você está rindo. E você pode perguntar: "Até que ponto você sente falta de comer?".
"Passei alguns dias sem conseguir pensar em outra coisa senão "root beer" (bebida feita de raízes)", respondeu, aludindo às semanas após à cirurgia no maxilar. Ele passou também por uma fase de fixação em doces.

REFEIÇÃO FAVORITA
E, em sua fantasia, voltava sempre para uma refeição favorita sua servida na Steak'n Shake, lanchonete antiquada muito apreciada no meio-oeste. Quando escreveu sobre ela, em 2009, em seu blog, as pessoas viram que o legendário crítico de cinema do "Chicago Sun-Times" também podia produzir ótimos textos sobre cozinha.
"Um garoto do interior do Illinois adora o Steak'n Shake do jeito como um porto-riquenho adora arroz e feijão, um egípcio, falafel, um britânico, salsichas com purê (...)", escreveu. "Não envolve gosto, mas a convicção profundamente arraigada de que um alimento é absolutamente bom e sempre será."
Ebert escreve e pensa sobre comida no tempo presente. "Agora, comer para mim é apenas no pretérito." E ele diz que tem uma "memória gastronômica voluptuosa" que só se fortalece.
"Me recordo do sabor e do cheiro de tudo, apesar de não conseguir mais sentir sabores ou cheiros", disse Ebert.
Essa afirmação, admite mais tarde, é um pouco abrangente demais. Ele não se lembra da comida de um spa francês, nem da última refeição que comeu. Porque quem poderia saber que os cirurgiões não seriam capazes de resolver tudo?
Mas ele se recorda de tudo sobre a comida do Steak'n Shake. No hospital, contou que comia refeições de lá mentalmente, uma bocada por vez. Mesmo assim, sente mais falta do companheirismo e da conversa à mesa.
"Sinto saudades das piadas, fofocas, dos risos, das discussões e das memórias compartilhadas", escreveu.
O comer, propriamente dito, não passa de um acessório. Qualquer pessoa que já tenha feito um jantar que foi um sucesso sabe disso. Mas a comida -o que diz respeito a cozinhar e compartilhar- ainda significa tanto para Roger Ebert que ele lança um livro de receitas este mês.
O título: "The Pot and How to Use It: The Mystery and Romance of the Rice Cooker" (a panela e como usá-la: o mistério e romance da panela de arroz), pela Andrews McMeel Publishing, a US$ 14,99 na Amazon.
Como pode um sujeito que não tem língua escrever uma receita? "Está tudo na experiência", ele escreve. "Já usei a panela tantas vezes que sei que gosto terá o que preparo nela, obrigatoriamente."
A maioria das receitas saiu da cabeça de Ebert, de amigos e de um grupo de leitores de seu blog. "O blog me abriu um mundo novo, exatamente quando eu precisava", diz.
Dorothy O'Brien, que editou o livro, enviou as receitas a degustadores para colocar ordem na coleção. Mas não havia muito a ser feito no texto. Estava quase perfeito. O livro, diz ela, "é mais sobre sua filosofia da comida, das razões pelas quais comemos"


Tradução de Clara Allain


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