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FERNANDO BONASSI
O dia D das crianças
Invocar crianças é melodramático, patético, arcaico. Procedimento de jornalistas covardes, cronistas arruaceiros e marqueteiros bem-sucedidos... Acontece que, quando as crianças não
são mais apenas esnobadas e
maltratadas, mas seqüestradas,
fuziladas e esmagadas, alguma
coisa não está acontecendo!
Deve haver algo de podre no reino da garotada! Pois se até as
apresentadoras loiras estão deixando de lado essas crianças otárias, tingindo o cabelo e mudando de emprego por novas faixas
etárias! Independentemente da
matéria malcheirosa que umas e
outras tenham nos capilares da
cabeça, o fato é que essa data
charmosa está chegando meio venenosa, quando parece soar mais
como vaticínio do que como um
desígnio de esperança.
Alguém pode objetar: invocar
crianças para quê, se parecemos
tão invocados com elas? É verdade... e assim cozinhamos em fogo
brando o conflito do pós-guerra
fria das gerações: ficam os animais selvagens de um lado e os inteligentes domesticados demais
do outro.
Considerando que em pouco
tempo, como regra, os pequenos
crescerão, é necessário que possam fazer suas escolhas sobre o tipo de gigantes que serão nesta
terra. Quanto a nós, será de bom
tom sabermos o que fazemos por
elas; se não pelas dos outros esquecidas, ao menos pelas nossas
conhecidas! Porque tem isso: que
espécie de família é essa em que
fomos metidos sem querer? Seria
essa se pudéssemos escolher?
Hoje temos as opções dos divórcios e separações suavizadas por
revistas de conselhos e livrinhos
de auto-ajuda, mas o que é que isso muda?
Nesse dia nem todas as crianças
estarão mamadas, beijadas e vestidas para passeio. Algumas nem
terão recreio e, na merenda engolida com receio, tremerão na saída para casa, onde os bichos-papões espreitam nas esquinas ou
sob o próprio teto, na surdina dos
"afetos". Poderão estar nos campos de refugiados, desinteressados
dessas fronteiras pelas quais brigam os seus pais, mais ou menos
explosivos. Poderão estar escondidas nas lavanderias, atrás das
pias e refrigeradores, onde as empregadas paridas dos doutores
têm medo de dizer às patroas que
se reproduzem, que têm prazeres
em seu meio e que podem ser felizes fora do lar alheio onde vendem os seus serviços amiúde.
Alices aliciadas em casas de
programa, as crianças comercializam-se a troco de bananas no
supermercado de princesas, partindo de suas mesas vazias como
quem vai à vida em festas bacanas e encontrando os sacanas dos
palácios na entrada do bordel. Este gosto de fel será transferido à
molecada futura, em suas favelas
escuras e camas de campanha. É
relevante lembrar que essas
crianças perdidas poderão ser
adotadas por traficantes solidários, para brincarem de aviõezinhos solitários numa guerra de
meninos.
Quando tudo faltar, e elas ainda persistirem em sobrar, poderão estar nas malhas da lei. Serão
as crianças espertas diante da justiça cega, com o braço cansado
desses balanços de pagamentos
cheios de promessas, lamentos e
acidentes. Se não valerem enquanto pesarem o suficiente para
o subemprego, poderão ser detidas para averiguações e melhores
explicações do que as nossas aos
mercados submersos, em estados
de greve ou de graça. O estágio de
cada civilização é o estado de suas
crianças!
"Que novidade tediosa!", diriam os mais severos céticos da
modernidade duvidosa. Para
mim, novidade mesmo é que as
crianças estão aprendendo depressa demais o desespero antes
do cansaço e a impaciência antes
da prudência, promovendo rebeliões de gente grande, com pauladas, tiros e facadas. Que os funcionários do "sistema" chamem a
isso de "acerto de contas", é muito
certo! Eles só precisam fazer bem
as contas de seu desleixo, pois desse modo o problema do menor será um problema menor, já que
desaparecerão da face das prisões, cortando-lhes os empregos
concursados nas fundações, autarquias e polícias (mesmo sabendo todos que nas casas de correção as crianças não farão "tudo
certinho", ou que seja "corretamente", como queremos os adultos mais experientes).
O Dia das Crianças está chegando de verdade. Na realidade,
o mais longo de seus dias de
criança, pois poderemos estar assistindo ao "dia D" das pessoas
dessa idade. Mesmo que para os
distraídos pareça um instante, será impressionante quando erguerem os olhos de si mesmos para
uma pergunta incoerente, um
sorriso sem dentes, um muxoxo,
uma cólica, um choroso tormento
ou a fralda cheia do que importa
no momento.
Será na semana que vem, numa
terça qualquer, numa edição de
jornal fino, de destinos que não se
cumprem, de pessoas que esperam um dia melhor, que torcem
pelo final de uma semana que
acabou de passar e que demora a
chegar de novo. Para alguns será
um estorvo essa segunda terça do
mês, uma terça de terceira, besta e
folgada, cheia de aulas de desconhecimento, comerciais de refrigerante, brinquedos falantes e algum ignorante mandando matar
um outro alguém no horário nobre. Todos serão pobres, menos o
locutor, que em seu furor pode
mesmo pedir a redução da maioridade à metade! Nunca primamos por sutilezas e, por uma gentileza dos fabricantes de miudezas, essa terça será noticiada...
Então teremos a obrigação de
pensar algumas coisas das crianças, como por exemplo o fato de
havermos combinado moralmente que elas seriam aquela parcela
inocente e intocada pela brutalidade siderada da burrice mais
madura, se lembram disso?
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