São Paulo, terça-feira, 05 de outubro de 2004

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FERNANDO BONASSI

O dia D das crianças

Invocar crianças é melodramático, patético, arcaico. Procedimento de jornalistas covardes, cronistas arruaceiros e marqueteiros bem-sucedidos... Acontece que, quando as crianças não são mais apenas esnobadas e maltratadas, mas seqüestradas, fuziladas e esmagadas, alguma coisa não está acontecendo!
Deve haver algo de podre no reino da garotada! Pois se até as apresentadoras loiras estão deixando de lado essas crianças otárias, tingindo o cabelo e mudando de emprego por novas faixas etárias! Independentemente da matéria malcheirosa que umas e outras tenham nos capilares da cabeça, o fato é que essa data charmosa está chegando meio venenosa, quando parece soar mais como vaticínio do que como um desígnio de esperança.
Alguém pode objetar: invocar crianças para quê, se parecemos tão invocados com elas? É verdade... e assim cozinhamos em fogo brando o conflito do pós-guerra fria das gerações: ficam os animais selvagens de um lado e os inteligentes domesticados demais do outro.
Considerando que em pouco tempo, como regra, os pequenos crescerão, é necessário que possam fazer suas escolhas sobre o tipo de gigantes que serão nesta terra. Quanto a nós, será de bom tom sabermos o que fazemos por elas; se não pelas dos outros esquecidas, ao menos pelas nossas conhecidas! Porque tem isso: que espécie de família é essa em que fomos metidos sem querer? Seria essa se pudéssemos escolher?
Hoje temos as opções dos divórcios e separações suavizadas por revistas de conselhos e livrinhos de auto-ajuda, mas o que é que isso muda?
Nesse dia nem todas as crianças estarão mamadas, beijadas e vestidas para passeio. Algumas nem terão recreio e, na merenda engolida com receio, tremerão na saída para casa, onde os bichos-papões espreitam nas esquinas ou sob o próprio teto, na surdina dos "afetos". Poderão estar nos campos de refugiados, desinteressados dessas fronteiras pelas quais brigam os seus pais, mais ou menos explosivos. Poderão estar escondidas nas lavanderias, atrás das pias e refrigeradores, onde as empregadas paridas dos doutores têm medo de dizer às patroas que se reproduzem, que têm prazeres em seu meio e que podem ser felizes fora do lar alheio onde vendem os seus serviços amiúde.
Alices aliciadas em casas de programa, as crianças comercializam-se a troco de bananas no supermercado de princesas, partindo de suas mesas vazias como quem vai à vida em festas bacanas e encontrando os sacanas dos palácios na entrada do bordel. Este gosto de fel será transferido à molecada futura, em suas favelas escuras e camas de campanha. É relevante lembrar que essas crianças perdidas poderão ser adotadas por traficantes solidários, para brincarem de aviõezinhos solitários numa guerra de meninos.
Quando tudo faltar, e elas ainda persistirem em sobrar, poderão estar nas malhas da lei. Serão as crianças espertas diante da justiça cega, com o braço cansado desses balanços de pagamentos cheios de promessas, lamentos e acidentes. Se não valerem enquanto pesarem o suficiente para o subemprego, poderão ser detidas para averiguações e melhores explicações do que as nossas aos mercados submersos, em estados de greve ou de graça. O estágio de cada civilização é o estado de suas crianças!
"Que novidade tediosa!", diriam os mais severos céticos da modernidade duvidosa. Para mim, novidade mesmo é que as crianças estão aprendendo depressa demais o desespero antes do cansaço e a impaciência antes da prudência, promovendo rebeliões de gente grande, com pauladas, tiros e facadas. Que os funcionários do "sistema" chamem a isso de "acerto de contas", é muito certo! Eles só precisam fazer bem as contas de seu desleixo, pois desse modo o problema do menor será um problema menor, já que desaparecerão da face das prisões, cortando-lhes os empregos concursados nas fundações, autarquias e polícias (mesmo sabendo todos que nas casas de correção as crianças não farão "tudo certinho", ou que seja "corretamente", como queremos os adultos mais experientes).
O Dia das Crianças está chegando de verdade. Na realidade, o mais longo de seus dias de criança, pois poderemos estar assistindo ao "dia D" das pessoas dessa idade. Mesmo que para os distraídos pareça um instante, será impressionante quando erguerem os olhos de si mesmos para uma pergunta incoerente, um sorriso sem dentes, um muxoxo, uma cólica, um choroso tormento ou a fralda cheia do que importa no momento.
Será na semana que vem, numa terça qualquer, numa edição de jornal fino, de destinos que não se cumprem, de pessoas que esperam um dia melhor, que torcem pelo final de uma semana que acabou de passar e que demora a chegar de novo. Para alguns será um estorvo essa segunda terça do mês, uma terça de terceira, besta e folgada, cheia de aulas de desconhecimento, comerciais de refrigerante, brinquedos falantes e algum ignorante mandando matar um outro alguém no horário nobre. Todos serão pobres, menos o locutor, que em seu furor pode mesmo pedir a redução da maioridade à metade! Nunca primamos por sutilezas e, por uma gentileza dos fabricantes de miudezas, essa terça será noticiada...
Então teremos a obrigação de pensar algumas coisas das crianças, como por exemplo o fato de havermos combinado moralmente que elas seriam aquela parcela inocente e intocada pela brutalidade siderada da burrice mais madura, se lembram disso?


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