São Paulo, quarta-feira, 05 de outubro de 2005

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MARCELO COELHO

De Bronco a Maxwell Smart, um longo caminho

A época da "Família Trapo" eu acompanhei ainda criança, o que não torna muito confiáveis as minhas opiniões sobre Ronald Golias no seu auge. Mas depois, já na idade adulta, quando me acontecia de topar com ele nos barracos da TV aberta, não tinha jeito. Bem que eu tentava não rir, mas em questão de poucos segundos a graça pessoal de Golias superava qualquer restrição que eu pudesse fazer à grosseria do texto e à estupidez da situação em cena.
Foi assim neste último sábado, com o especial que o SBT transmitiu em homenagem póstuma ao comediante. Lá estava, reconfortante e inalterável, Carlos Alberto da Nóbrega, no papel clássico do cidadão normal, sensato, bem-posto na vida, que há décadas ele representa no mesmo programa.
Digo "papel" e "representa", mas está errado. Carlos Alberto da Nóbrega não parece ser mais do que ele próprio, nas atribuições constituídas de diretor do programa ou agente comercial dos humoristas; mantém-se no plano de uma realidade empresarial, plácida e concreta, enquanto se sucedem no famoso banco de praça os tipos mais aberrantes da psicologia circense: o marido irascível, o índio impávido e solene, o maricão descontrolado, a velhinha surda de guarda-chuva, que sei eu...
Uma irrealidade extrema animava todos aqueles personagens humorísticos, mas o caso de Golias era diferente. A força de seu talento cômico libertava-o de qualquer papel, de qualquer personagem, de qualquer roteiro preestabelecido. Caracterizado como um velhote de barba branca, estabelecido como um dono de botequim, ou aparecendo com o boné virado de criança, ele era sempre o mesmo, e nisso estava o mais infernalmente engraçado de suas apresentações.
No programa do SBT, reprisou-se uma visita de Hebe Camargo à "Praça". Não havia "script" possível: Bronco atirou-se sobre ela com uma fúria humorística selvagem. "Que testa! Que testa!", dizia ele sem parar, como se enlouquecido de desejo sexual. Hebe Camargo não tinha o que responder, torcendo-se de riso.
Com Agnaldo Rayol, não foi diferente. Golias fixou-se no furinho do queixo do cantor. Veio um festival de gozações grosseiras, numa insistência maluca; a fala do comediante se cortava de pausas sem razão, como se lhe faltasse um pouco de assunto, e aí ressurgia em novas investidas, num jogo de gato e rato. Seria quase violento, não fosse ingênuo, instintivo, feliz.
É como se o poder de Golias fosse grande demais para incidir apenas sobre as situações ficcionais de uma comédia. Ele não contracenava com os personagens, mas com os atores reais; empenhava-se em fazer rir, não só o público, mas também seus colegas de palco; anarquizava a própria representação como uma força natural, capaz de destruir qualquer coisa combinada nos bastidores. Faz sentido que se procurassem, então, celebridades do mundo real, como Hebe ou Pelé, para momentaneamente conviver com Bronco.
Na "Família Trapo", o papel conferido a Golias era o do cunhado parasita e bagunceiro. Seu antagonista, Otelo Zeloni, tratava de exercer as torturadas responsabilidades que se reservam ao dono de uma fábrica de grampos em estado pré-falimentar. Curiosa a escolha de Zeloni para esse papel: não só porque era calvo mas também porque seu jeitão de empresário paulista, com sotaque italiano e dinamismo irrefreável, já fora testado no filme "São Paulo S.A.", de Luís Sérgio Person.
Enquanto Zeloni se encarregava de levar nosso país para a frente, num industrialismo ainda familiar e rústico, Bronco o perseguia como a sombra do atraso tupiniquim. Tratava-se de encarnar o brasileiro em seus momentos de máxima incompetência e canastrice. Ao prometer que o cheque tinha fundos, ao fingir-se atento em conversas que não o interessavam, ao julgar-se perfeito no portunhol, ao promover gestos de conciliação movidos pela covardia mais explícita, ao provocar com insultos os adversários, desde que estivessem distantes o bastante para não ouvi-lo, Bronco era brasileiríssimo na sua absoluta falta de amor-próprio e na sua também absoluta confiança de que o mundo estava sempre a seu favor.
Nada mais diferente de Bronco do que Maxwell Smart -para lembrar Don Adams, outro ator cômico falecido na mesma semana. O espião catastrófico do seriado "Agente 86" acreditava piamente na modernidade eletrônica e na própria competência. A graça de Smart estava no seu empenho anglo-saxão em cumprir missões que uma burrice pétrea tornava mais impossíveis do que nunca.
No auto-engano de Bronco, não havia lugar para a arrogância. Ele não aceitaria missão nenhuma, exceto, talvez, a de acabar com um mundo em que a idéia de "missão" pudesse ser cogitada.
Carlos Bronco Dinossauro tinha mesmo de ser o seu nome completo; não pelo que sugerisse de brutalidade destrutiva, mas sim pelo que trouxesse de anacrônico, de sem-lugar, de condenado à extinção, talvez.
Só que aquela função de Bronco, a de sabotar todos os modestos esforços desenvolvimentistas de Zeloni, terminava extravasando para o palco; em última análise, o talento de Golias tornaria inviável a própria encenação teatral, explodindo em puro improviso o que se armava como uma sitcom brasileira antes do tempo.
Realidade e farsa reduziam-se para ele a uma coisa só; enquanto isso, o país, com os lances de tragicomédia e de grotesco que se conhecem, ia de fato se desenvolvendo. Não é à toa que Golias terminou na periferia da programação, sobrevivendo como uma loucura arcaica, um desatino infantil, uma obscenidade gloriosa e reprimida sob a ordem falsamente asséptica da modernidade.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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