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FESTIVAL DO RIO
Filme de Eryk Rocha revela a orfandade política brasileira
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
As primeiras imagens já deixam claro. Você não verá este filme na televisão. São rostos.
Olhos. Dentes. Pés que se entrelaçam. O espaço no qual Eryk Rocha mergulha em "Intervalo
Clandestino", que estréia hoje no
Festival do Rio, é o da geografia
humana brasileira.
O filme desloca o debate político
para a boca daqueles que raramente são ouvidos. Acompanha,
de dentro, das ruas, os momentos
de esperança e decepções que
marcaram os últimos quatro anos
da vida brasileira. Não o faz de
forma banal. Aqui, não é só o assunto que é reintroduzido de maneira original. É a própria matéria
cinematográfica, sons e imagens,
que são tratados de forma radical
e surpreendente. Rocha leva o
projeto de um cinema lírico e sangüíneo, iniciado com "Rocha que
Voa", a um degrau acima.
"Intervalo Clandestino" não se
filia exatamente à família dos documentários recentes que tratam
direta ou indiretamente de questões políticas, como "S 21", de
Rithy Panh, "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, ou o
incandescente "Mondovino", de
Jonathan Nossiter. O que o filme
se propõe a fazer é botar o dedo
na ferida, ou seja, não recusar a
pergunta frontal: o que é política?
É aí que "Intervalo Clandestino"
ganha uma qualidade reveladora.
Por um lado, percebe-se vendo o
filme que a distância entre representados e representantes, entre
população e Estado, é ainda
maior do que se poderia esperar
no Brasil. O que Rocha constata é
a absoluta orfandade do povo
brasileiro, ao mesmo tempo em
que registra os únicos momentos
em que houve uma aproximação
entre as partes -a eleição de Lula. Depois disso, nova bifurcação.
O filme também mostra o quanto o debate político brasileiro empobreceu depois do golpe militar
de 1964. Ao fazer isso, recoloca
uma questão fundamental: a política vai além da relação entre os
que votam a cada quatro anos e os
seus representantes. Tem a ver
com a convivência diária dos contrários dentro do espaço publico
-a "polis". Define, portanto, as
relações de pertencimento a um
mundo, a um país, comum.
Sem reacender esse debate, não
iremos além da atual situação de
desencanto e desesperança, sugere Rocha. Não é muito diferente
do que o filósofo Jacques Rancière
diz numa citação recente na revista "Cahiers du Cinéma": "Antes
de ser um conflito de classes ou de
partidos, a política é um conflito
constante sobre a configuração
do mundo (...). É uma prática que
permite ver o que não é visto, escutar o que não é ouvido". É exatamente esse desejo de reaprender a ver e ouvir que está no centro deste filme, potencializado
por uma montagem constantemente inventiva.
"Intervalo Clandestino" não é
para aqueles que acham que a melhor maneira de esquecer a overdose de "mensalões" e "mensalinhos" é o distanciamento dessa
matéria impura chamada política.
O filme de Eryk Rocha sugere um
outro antídoto para o mesmo
mal: não recusar o conflito e instigar o debate. Por isso, e também
por seu vigor cinematográfico, é
um filme que chega em boa hora.
Walter Salles é diretor de "Central do
Brasil" e "Diários de Motocicleta"
Intervalo Clandestino
Direção: Eryk Rocha
Quando: hoje, às 19h, no Odeon BR
(mais em www.festivaldorio.com.br)
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