São Paulo, quarta-feira, 05 de outubro de 2005

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FESTIVAL DO RIO

Filme de Eryk Rocha revela a orfandade política brasileira

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As primeiras imagens já deixam claro. Você não verá este filme na televisão. São rostos. Olhos. Dentes. Pés que se entrelaçam. O espaço no qual Eryk Rocha mergulha em "Intervalo Clandestino", que estréia hoje no Festival do Rio, é o da geografia humana brasileira.
O filme desloca o debate político para a boca daqueles que raramente são ouvidos. Acompanha, de dentro, das ruas, os momentos de esperança e decepções que marcaram os últimos quatro anos da vida brasileira. Não o faz de forma banal. Aqui, não é só o assunto que é reintroduzido de maneira original. É a própria matéria cinematográfica, sons e imagens, que são tratados de forma radical e surpreendente. Rocha leva o projeto de um cinema lírico e sangüíneo, iniciado com "Rocha que Voa", a um degrau acima.
"Intervalo Clandestino" não se filia exatamente à família dos documentários recentes que tratam direta ou indiretamente de questões políticas, como "S 21", de Rithy Panh, "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, ou o incandescente "Mondovino", de Jonathan Nossiter. O que o filme se propõe a fazer é botar o dedo na ferida, ou seja, não recusar a pergunta frontal: o que é política?
É aí que "Intervalo Clandestino" ganha uma qualidade reveladora. Por um lado, percebe-se vendo o filme que a distância entre representados e representantes, entre população e Estado, é ainda maior do que se poderia esperar no Brasil. O que Rocha constata é a absoluta orfandade do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que registra os únicos momentos em que houve uma aproximação entre as partes -a eleição de Lula. Depois disso, nova bifurcação.
O filme também mostra o quanto o debate político brasileiro empobreceu depois do golpe militar de 1964. Ao fazer isso, recoloca uma questão fundamental: a política vai além da relação entre os que votam a cada quatro anos e os seus representantes. Tem a ver com a convivência diária dos contrários dentro do espaço publico -a "polis". Define, portanto, as relações de pertencimento a um mundo, a um país, comum.
Sem reacender esse debate, não iremos além da atual situação de desencanto e desesperança, sugere Rocha. Não é muito diferente do que o filósofo Jacques Rancière diz numa citação recente na revista "Cahiers du Cinéma": "Antes de ser um conflito de classes ou de partidos, a política é um conflito constante sobre a configuração do mundo (...). É uma prática que permite ver o que não é visto, escutar o que não é ouvido". É exatamente esse desejo de reaprender a ver e ouvir que está no centro deste filme, potencializado por uma montagem constantemente inventiva.
"Intervalo Clandestino" não é para aqueles que acham que a melhor maneira de esquecer a overdose de "mensalões" e "mensalinhos" é o distanciamento dessa matéria impura chamada política. O filme de Eryk Rocha sugere um outro antídoto para o mesmo mal: não recusar o conflito e instigar o debate. Por isso, e também por seu vigor cinematográfico, é um filme que chega em boa hora.


Walter Salles é diretor de "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta"

Intervalo Clandestino
Direção:
Eryk Rocha
Quando: hoje, às 19h, no Odeon BR (mais em www.festivaldorio.com.br)


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