São Paulo, sexta-feira, 05 de outubro de 2007

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Crítica/"Propriedade Privada"

Filme belga faz belo e delicado registro das relações familiares

Diretor explora tensão afetiva entre gestos e olhares e vai além da palavra ao expor pontos de vista dos personagens

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Tudo, em "Propriedade Privada", gira em torno de uma casa. A casa onde Pascale (Isabelle Huppert) mora com seus dois filhos gêmeos, Thierry e François. Por sugestão de Jan, seu namorado, ela planeja vender a casa para abrir uma pousada em outro lugar. Aí começam a surgir as contradições, seja com os filhos, seja com o ex-marido.
Estamos em algum lugar no interior da Bélgica, país do diretor Joachim Lafosse. Uma aldeola por onde, se alguém passar, imaginará que é impossível viver ali sem ser feliz.
Mas a infelicidade tem muito pouco a ver com esses clichês idílicos. Ela está nos detalhes, nas pequenas diferenças que separam dois irmãos gêmeos, na tensão muito particular que os membros de um antigo casal manifestam quando voltam a se encontrar etc.
Mal comparando, "Propriedade Privada" não deixa de lembrar "A Guerra dos Roses", de Danny DeVito. Neste último, é verdade, os conflitos acontecem de maneira ruidosa, enquanto no filme de Lafosse eles são discretos como o correr de um pequeno rio. Mas existem.
Essa proximidade talvez ajuda a compreender certas diferenças entre a escola americana e a francesa (ou francófone), a que pertence Lafosse. Nesta última, o que mais importa é constatar a existência do mundo. A dramaticidade que existe é colocada em surdina. Não importa, em "Propriedade Privada", constatar quem é bom ou quem é mau na história, quem tem culpa ou não pelos acontecimentos.
A sucessão de pequenas histórias que envolvem os personagens -da necessidade de obter dinheiro à destinação desse dinheiro; os rancores eventuais dos filhos em vista da separação dos pais; a proximidade e as disputas entre os gêmeos etc.- é que procura dar conta de sua situação afetiva.
O que o sistema de Lafosse tem de interessante é a capacidade de mostrar o ponto de vista de cada um dos personagens, de tal modo que o espectador compõe um quadro das afinidades e desentendimentos que ali acontecem -conjunto a que, justamente, não têm acesso os personagens (como nós em nossas vidas, no mais).
Com isso, um longo plano fixo em torno de uma mesa de jantar, por exemplo, não nos informa apenas sobre o comportamento durante as refeições como, sobretudo, introduz a relação entre a fala e as pausas, dá conta de tensões que não raro estão mais nos gestos e nos olhares de cada um do que nas palavras.
O bem-sucedido de "Propriedade Privada" passa, bem entendido, por Isabelle Huppert. Passa, em particular, por atravessarmos mais ou menos hora e meia sem nos perguntarmos sobre sua atuação. É como se ela não atuasse. É como se ela fosse aquela mulher e estivesse lá naquele momento. Este é um atributo de poucas e admiráveis atrizes.


PROPRIEDADE PRIVADA
Direção: Joachim Lafosse
Produção: Bélgica, França, Luxemburgo, 2006
Com: Isabelle Huppert, Jérémie Renier, Yannick Renier
Onde: em cartaz nos cines Unibanco Arteplex e Reserva Cultural
Avaliação: bom



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