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São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

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"A DITADURA DERROTADA"

Gaspari envia mensagem a 'autoridade'


Jornalista revela mais de 220 gravações entre Geisel e Golbery que, transcritas, ocupariam mais de 40 mil páginas


DA REPORTAGEM LOCAL

Com um reprodutor de CD que acionava com um pedal, Elio Gaspari fez a transcrição -ao longo de 18 anos- das 222 horas de gravação das conversas de Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e dezenas de personagens da história política recente brasileira, entre outubro de 1973 e março de 1974. Parte sabia ou desconfiava estar sendo gravada. Parte não.
Algumas declarações não foram publicadas por dificuldades técnicas. Ao comentar a derrota governista na eleição para o Senado em 1974, o general João Baptista Figueiredo, então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), aparece no livro afirmando: "Povo de merda que não sabe votar".
A expressão se origina de uma das 565 fichas eletrônicas com transcrições. Gaspari aciona o computador e ouve-se Figueiredo dizendo a sentença que está no livro, acompanhada da transcrição na tela. Mas se percebe que há uma frase anterior àquela publicada. O repórter da Folha não consegue entendê-la.
Obviamente, Gaspari e a equipe da Companhia das Letras foram mais longe. A equipe checou todas as transcrições publicadas no livro com o que pode ser ouvido nas fitas. Chegou-se a produzir uma versão em cadência mais lenta no laboratório que transformou as fitas em CDs.
Mas o autor e a equipe não chegaram a um acordo se Figueiredo dizia "são todos uns putos" ou "são todos uns burros". Sugestionado, ao repórter pareceu correta a primeira opção. O sujeito da frase são os eleitores brasileiros, mas, sem saber qual predicado era a eles atribuído, Gaspari decidiu suprimir todo o período.
O jornalista diz que seus livros não existiriam sem o computador. Acompanhar Gaspari no computador torna-se um exercício quase lúdico. Ele digita: "R038F03LA", sequência que dá a impressão de ser letras e números colocados aleatoriamente lado a lado. Mas formam uma chave para o acesso a informações que, se transcritas, ultrapassariam 40 mil páginas -mais que os 32 volumes da Enciclopédia Britânica.
Na tela em seu computador Macintosh, surge a explicação: "Rolo 038; fita 03; lado A - conversa em 31 de janeiro de 74. Geisel e a crise de 1961. Tomada do aeroporto de Curitiba". O resumo é ínfimo perto da quantidade de informações. Geisel comenta, 13 anos depois, o que propunha para combater o movimento em defesa da posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros em 1961.
Liderado no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola e com adesão de tropas militares à causa janguista, Geisel afirma ter discutido com o general Odylio Dennys que os pára-quedistas ocupassem o aeroporto de Curitiba como base para o ataque ao Rio Grande do Sul. Dennys refuta a idéia dizendo que os pára-quedistas não poderiam ser usados, por fazerem parte das tropas de reserva.
Em outra ficha eletrônica, pode-se ouvir e acompanhar a transcrição de conversas de Geisel, como quando articulava seu ministério. Num clique, ouve-se Geisel dizer: "Não tem de ficar checando se é revolucionário ou não é revolucionário. Se for fazer essa triagem, você vai terminar sozinho".
O jornalista afirma ter dispensado informações de ordem pessoal, a menos que retratassem a alma naquele momento de um personagem público.
Só são reveladas gravações de pessoas que não sabem que estão sendo gravadas quando elas ocupam cargos públicos, querem ocupar ou estão discutindo políticas públicas, ressalta Gaspari.
Nas fitas, por exemplo, Geisel aparece em conversas prosaicas, como a que tem com um irmão, Bernardo. "Vou ficar só 30 minutos", diz Geisel sobre o almoço com o irmão. "Então é melhor não vir", ouve como resposta.
Ao receber o arquivo de Golbery e Heitor Ferreira, Gaspari sabia da existência das conversas gravadas, mas reconhece que não imaginava a "extensão da fitologia". Admira-se por elas nunca terem vindo à tona, num país em que, na definição de Golbery, só guarda segredo quem não sabe.
O autor diz que seguiu uma diretriz ao escrever seu terceiro livro. Não deixar que a obra virasse a revelação das fitas, mas sim que amparassem a narrativa de fatos descritos a partir de outras fontes.
Gaspari tem a esperança de que seu livro seja uma mensagem a uma "autoridade militar" que, segundo ele, tem as interceptações telefônicas de Janio Quadros no dia de sua renúncia. O jornalista espera que o livro evite que tal autoridade militar destrua as transcrições que mantém numa caixa de sapato no Rio. A atual série de livros de Gaspari é um trabalho de quase 20 anos. Os papéis da caixa de sapato são uma obsessão de outros 20 anos, quando tomou conhecimento de sua existência. (PLÍNIO FRAGA)


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