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"A DITADURA DERROTADA"
Gravações revelam bastidores da repressão; "matar é uma barbaridade, mas tem que ser", disse Geisel
VOZES DO SACERDOTE
Orlando Brito/Obritonews
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O general Ernesto Geisel (1907-1996), cujas conversas com Golbery do Couto e Silva servem de base para 'A Ditadura Derrotada' |
PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL
Em "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada",
a narrativa do jornalista Elio Gaspari para o nascimento, a consolidação e o endurecimento do regime militar de 1964 surpreendia
por sua capacidade de relacionar
o que se dizia nos palácios com o
que se vivia nos porões. Saiu daí
um painel sem precedentes na
historiografia acadêmica ou jornalística sobre o período que o
país foi comandado das casernas.
"A Ditadura Derrotada", o terceiro volume da série sobre o ciclo
militar "As Ilusões Armadas",
que chega hoje às livrarias, revela
as vozes dos senhores do regime,
que falam coisas de assustar, como demonstra a seguinte conversa gravada de Ernesto Geisel
(1907-1996), em 16 de fevereiro de
1974, um mês antes de assumir a
Presidência da República.
"Acho que a subversão não acabou. Isso é um vírus danado que
não há antibiótico que liquide
com facilidade. Está amainado.
Está resolvido. Você vê, de vez em
quando, há uma articulação,
morre gente ou é gente presa, ele
continua a se movimentar", afirma Geisel para o general Dale
Coutinho, na conversa em que lhe
faz o convite para que se torne o
titular do Ministério do Exército
em seu governo.
"O negócio melhorou muito.
Agora, melhorou, aqui entre nós,
foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar", afirma
o então futuro ministro. É complementado pelo futuro presidente da República.
"Porque antigamente você
prendia o sujeito e ia lá para fora
(...). Ó Coutinho, esse troço de
matar é uma barbaridade, mas
acho que tem que ser."
No diálogo com o general, Geisel cita que, semanas antes, foi
"pego e liquidado" Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, líder
da guerrilha do Araguaia, na qual
grupos de esquerda armados
atuaram contra o regime até meados daquele ano.
"Nós não podemos largar essa
guerra. Infelizmente nós vamos
ter que continuar. É claro que vamos ter que estudar [algum ou
novo, a gravação fica inaudível]
processo, vamos ter que repensar...", afirma Geisel.
Não há registro histórico dessa
proporção. As duas mais altas autoridades brasileiras à época afirmando que o Estado brasileiro
matou opositores que estavam
sob sua custódia. Afirmando em
alto e bom som.
É o caso, por exemplo, de Osvaldão, que foi capturado pelas forças repressivas do Exército e assassinado, como reconhece Geisel
nas gravações.
O diálogo que o livro de Gaspari
-colunista da Folha e de "O Globo"- reproduz se origina de 222
horas de gravação de conversas
de Geisel e assessores, feitas entre
outubro de 1973 e março de 1974,
sob a coordenação de Heitor
Aquino Ferreira, seu secretário
particular.
Os 70 rolos em cassete, depois
convertidos para CDs, fazem parte do arquivo de Golbery do Couto Silva (1911-1987) e Heitor Ferreira, ao lado de mais de 5.000 documentos e de um diário de 1.500
páginas com minuciosas anotações do cotidiano do poder.
As transcrições só vêm a público graças à inspiração de um precedente americano, as transcrições das conversas dos presidentes John Kennedy e Lindon Johnson, que foram tema do livro do
historiador Timothy Naftali.
Ferreira cedera as gravações a
Gaspari em 1985, com o compromisso de que não pudessem ser
transcritas. Com o precedente,
Ferreira permitiu que fossem citadas livremente, desde que preservada a vida particular dos outros.
As conversas foram gravadas
numa residência do Jardim Botânico e em um escritório do Largo
da Misericórdia, no Rio, pertencentes ao Ministério da Agricultura na época. Eram captadas por
um microfone, que transmitia
por frequência modulada para
um gravador Philips 85. Algumas
conversas telefônicas também foram captadas, por meio de uma
chupeta acoplada ao aparelho.
Mas o livro de Gaspari não se
restringe à transcrição das fitas. É
a continuação do desvendamento
das ações e das razões que levaram Geisel (batizado de "O Sacerdote") e Golbery ("O Feiticeiro")
de participantes do golpe que implantou a ditadura militar a ativos
desmontadores da estrutura então dita como revolucionária.
No livro fica claro que é obra do
governo Geisel o recurso ao "desaparecimento" para eliminar a
necessidade de justificativas para
a morte de contestadores do regime militar. De 1964 a 1970, os "desaparecidos" somam nove, e os
mortos com cadáver são 87, contabiliza Gaspari. Em 74, há 52
mortos e 52 "desaparecidos".
O jornalista então disseca a palavra: "Englobava todos os cidadãos capturados cujos cadáveres
sumiam sem ficar vestígio. Resultava da conjugação da política de
extermínio com a clandestinidade
do porão", define.
"Clandestinidade, no caso, não
significava paralelismo, autonomia ou descontrole. Os assassinatos eram praticados pela máquina
do Estado, com beneplácito da
hierarquia. Eram clandestinos,
porque, dentro dela, ocultavam-se", conclui Gaspari.
Para comprovar sua tese, como
nos dois volumes que precederam a publicação de "A Ditadura
Derrotada", mais de 1.500 notas
biográficas trazem a fonte da informação. No caso do Araguaia,
um documento do SNI (Serviço
Nacional de Informações), intitulado "Apreciação Sumária" e que
foi encaminhado a Geisel, o texto
é claro. Com o fim do período das
chuvas na região do Pará, recomeçariam as operações "visando
à destruição dos elementos que
ainda se encontram na região".
"A Ditadura Derrotada" começa com as articulações surgidas a
partir de junho de 1971, quando,
em um bilhete cifrado, revela que
o "Alemão", apelido de Ernesto
Geisel, seria o presidente a sucedê-lo em 1974.
O volume narra os bastidores
do poder durante os três anos e
cinco meses que se seguem até a
eleição para o Senado em 1974,
quando a oposição vence e surpreende os militares.
Gaspari afirma que ouviu críticas que diziam que seus dois livros anteriores não tinham "povo". Ele concorda e explica por
quê: o "povo" só dá as caras nessa
eleição em que a oposição venceu
a disputa para o Senado nos principais centros urbanos.
"Que esperar de um eleitorado
assim, um povinho assim", perguntou Heitor Aquino a Golbery.
"Que melhore, praticando. O povo não está com a revolução", respondeu Golbery.
Gaspari faz ainda uma reconstrução da trajetória pessoal e dos
interesses e hábitos de Geisel e
Golbery.
No caso de Geisel, cita a morte
de um filho, atropelado por um
trem, como separador de águas
em sua vida. Escreve Gaspari: "A
educação austera, a disciplina da
caserna e seu temperamento fizeram-no um retraído, mas a desgraça abateu-o a ponto de ele dizer, 30 anos depois, que "ao longo
de minha vida eu fui um infeliz". A
um amigo que passou por experiência semelhante, confessou: "É
uma dor que não acaba". Nunca
fora um lúdico, mas em 1957 perdeu até a capacidade de esperar
que a vida lhe desse alegrias. Os
dias festivos transformaram-se
em jornadas de sofrimento, queria que se esquecesse o Natal,
"porque minha família não está
completa"."
A DITADURA DERROTADA. De: Elio
Gaspari. Editora: Companhia das Letras.
Quanto: R$ 49,50 (544 págs.).
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