|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
O demônio da meditação
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A crítica pode ser considerada um gênero literário
comparável a formas consagradas
como o romance ou a lírica? A
questão já foi debatida por autores como Lukács, Adorno e Barthes -e é tema do livro "La Forma del Saggio" (editora Marsilio),
do escritor italiano Alfonso Berardinelli, que chega a São Paulo nesta semana para um curso e três
conferências na USP (informações podem ser obtidas pelo tel.
0/xx/11/ 3091-4645).
O título "A Forma do Ensaio" e
seu subtítulo ("Definição e Atualidade de um Gênero Literário") já
contêm a posição de Berardinelli:
a crítica é, sim, um gênero com
possibilidades criativas iguais às
das demais expressões em prosa e
verso, desde que exercido dentro
da longa tradição do ensaio, e não
como estudo acadêmico com pretensões pseudocientíficas.
"O Príncipe" de Maquiavel, o
"Dicionário Filosófico" de Voltaire, os "Opúsculos Morais" de Leopardi e "As Pedras de Veneza" de
John Ruskin são exemplos, citados por Berardinelli, de textos que
entraram no cânone das grandes
obras, consolidando uma tradição que deve seu batismo aos
"Ensaios" de Montaigne.
Não é fácil definir esse "gênero
fugidio", a meio caminho entre os
textos de reflexão e as formas de
escrita que têm por finalidade
criar um artefato estético. Mas tal
indefinição, justamente, parece
estar no cerne de sua lapidação estilística. "O ensaísta está indeciso
entre escolher a escolha e a suspensão das escolhas, entre a decisão e a incerteza", escreve Berardinelli num jogo de palavras que
vincula a forma evasiva e ondulante do ensaio àquela suspensão
cética do juízo revivida por Montaigne no fim do século 16 e presente em qualquer autor que tenha sido capturado pelo "demônio da meditação".
Ou seja, na impossibilidade de
legislar sobre o mundo, de dar
conta da realidade, o ensaísta se
refugia na tessitura de sua escrita,
numa deriva formal que corresponde menos à intenção de fazer
literatura do que à "transmutação
estética do desespero" de que fala
Starobinski.
Infelizmente, não há em nossa
língua muitos autores que discutam essa riquíssima linhagem.
Exceções são portugueses como
Sílvio Lima (autor do vetusto e delicioso "Ensaio sobre a Essência
do Ensaio"), António Sérgio,
Eduardo Lourenço e Eduardo
Prado Coelho, ou brasileiros como Lucia Miguel Pereira, João
Alexandre Barbosa e Alexandre
Eulálio -que em "O Ensaio Literário no Brasil" talvez tenha dado
a definição mais sucinta para o
gênero: "prosa literária de não-ficção".
A obra de Berardinelli, portanto, é uma eficientíssima apresentação dos problemas colocados
por esse "gênero do intervalo"
(segundo a fórmula de Luiz Costa
Lima). Aliás, as páginas iniciais do
livro são uma sucessão rapsódica
de iluminações (sintetizadas a seguir), compondo uma "poética
pessoal" que valeu a esse escritor
o Prêmio Viareggio de 2002.
"O ensaísta não pode se evadir
nem se fortificar na transcendência da forma artística. O ensaísta é
um visionário do pensamento e
um dialético da metáfora. Oscila
entre o rigor do aforismo e a fatuidade da frase de efeito. Não inventa universos alternativos nem
constrói uma bem organizada e
especulativa teoria do real. Se parece refratário, com suas divagações, à verdade e à beleza, é somente porque não ousa enfrentá-las ou não crê que enfrentá-las seja possível. Escolhe a visão indireta e momentânea, faz os conceitos
ressoarem como vozes, fazendo-os entrar em cena como máscaras."
Tais passagens retomam a idéia,
defendida por Lukács em "A Alma e as Formas", de que o ensaio
transforma o intelecto numa "experiência sentimental" do intelecto, enredando os conceitos (matéria-prima da reflexão) de modo
quase romanesco.
Nesse livro que aborda sobretudo ensaístas italianos -de Benedetto Croce e Mario Praz a Claudio Magris e Franco Moretti-,
Berardinelli também empreende
uma tipologia que contempla
"ensaístas puros" (Alain, Ortega y
Gasset), críticos literários, romancistas que introjetam a dimensão
reflexiva em suas narrativas e
poetas cujas glosas (comentários
à própria poética) são indissociáveis do trabalho de invenção.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Vitrine brasileira - Ficção Índice
|