São Paulo, sábado, 05 de novembro de 2005

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RODAPÉ

O demônio da meditação

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A crítica pode ser considerada um gênero literário comparável a formas consagradas como o romance ou a lírica? A questão já foi debatida por autores como Lukács, Adorno e Barthes -e é tema do livro "La Forma del Saggio" (editora Marsilio), do escritor italiano Alfonso Berardinelli, que chega a São Paulo nesta semana para um curso e três conferências na USP (informações podem ser obtidas pelo tel. 0/xx/11/ 3091-4645).
O título "A Forma do Ensaio" e seu subtítulo ("Definição e Atualidade de um Gênero Literário") já contêm a posição de Berardinelli: a crítica é, sim, um gênero com possibilidades criativas iguais às das demais expressões em prosa e verso, desde que exercido dentro da longa tradição do ensaio, e não como estudo acadêmico com pretensões pseudocientíficas.
"O Príncipe" de Maquiavel, o "Dicionário Filosófico" de Voltaire, os "Opúsculos Morais" de Leopardi e "As Pedras de Veneza" de John Ruskin são exemplos, citados por Berardinelli, de textos que entraram no cânone das grandes obras, consolidando uma tradição que deve seu batismo aos "Ensaios" de Montaigne.
Não é fácil definir esse "gênero fugidio", a meio caminho entre os textos de reflexão e as formas de escrita que têm por finalidade criar um artefato estético. Mas tal indefinição, justamente, parece estar no cerne de sua lapidação estilística. "O ensaísta está indeciso entre escolher a escolha e a suspensão das escolhas, entre a decisão e a incerteza", escreve Berardinelli num jogo de palavras que vincula a forma evasiva e ondulante do ensaio àquela suspensão cética do juízo revivida por Montaigne no fim do século 16 e presente em qualquer autor que tenha sido capturado pelo "demônio da meditação".
Ou seja, na impossibilidade de legislar sobre o mundo, de dar conta da realidade, o ensaísta se refugia na tessitura de sua escrita, numa deriva formal que corresponde menos à intenção de fazer literatura do que à "transmutação estética do desespero" de que fala Starobinski.
Infelizmente, não há em nossa língua muitos autores que discutam essa riquíssima linhagem. Exceções são portugueses como Sílvio Lima (autor do vetusto e delicioso "Ensaio sobre a Essência do Ensaio"), António Sérgio, Eduardo Lourenço e Eduardo Prado Coelho, ou brasileiros como Lucia Miguel Pereira, João Alexandre Barbosa e Alexandre Eulálio -que em "O Ensaio Literário no Brasil" talvez tenha dado a definição mais sucinta para o gênero: "prosa literária de não-ficção".
A obra de Berardinelli, portanto, é uma eficientíssima apresentação dos problemas colocados por esse "gênero do intervalo" (segundo a fórmula de Luiz Costa Lima). Aliás, as páginas iniciais do livro são uma sucessão rapsódica de iluminações (sintetizadas a seguir), compondo uma "poética pessoal" que valeu a esse escritor o Prêmio Viareggio de 2002.
"O ensaísta não pode se evadir nem se fortificar na transcendência da forma artística. O ensaísta é um visionário do pensamento e um dialético da metáfora. Oscila entre o rigor do aforismo e a fatuidade da frase de efeito. Não inventa universos alternativos nem constrói uma bem organizada e especulativa teoria do real. Se parece refratário, com suas divagações, à verdade e à beleza, é somente porque não ousa enfrentá-las ou não crê que enfrentá-las seja possível. Escolhe a visão indireta e momentânea, faz os conceitos ressoarem como vozes, fazendo-os entrar em cena como máscaras."
Tais passagens retomam a idéia, defendida por Lukács em "A Alma e as Formas", de que o ensaio transforma o intelecto numa "experiência sentimental" do intelecto, enredando os conceitos (matéria-prima da reflexão) de modo quase romanesco.
Nesse livro que aborda sobretudo ensaístas italianos -de Benedetto Croce e Mario Praz a Claudio Magris e Franco Moretti-, Berardinelli também empreende uma tipologia que contempla "ensaístas puros" (Alain, Ortega y Gasset), críticos literários, romancistas que introjetam a dimensão reflexiva em suas narrativas e poetas cujas glosas (comentários à própria poética) são indissociáveis do trabalho de invenção.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço


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