São Paulo, sábado, 06 de janeiro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

A ficção hesitante

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O angolano de origem portuguesa Ruy Duarte de Carvalho, 59, é um escritor que, a exemplo do francês Michel Leiris, autor do clássico "L'Afrique Fantôme" (1934), faz do cruzamento entre antropologia e literatura um gênero próprio.
Além de antropólogo, professor na Universidade de Luanda, tem em seu currículo "11 títulos de poesia e cerca de 20 horas de cinema documentário". Em março do ano passado, a editora Gryphus, do Rio de Janeiro, publicou "Vou Lá Visitar Pastores", relato de viagem ao território Kuvale, no sudoeste de Angola, sua especialidade. Em dezembro, a Cotovia, de Lisboa, lançou "Os Papéis do Inglês", em que a antropologia inspira uma narrativa auto-reflexiva das mais peculiares e originais. Uma prosa em que se ouvem ecos de Joseph Conrad e Henry James.
"Vou Lá Visitar Pastores" tinha como ponto de partida uma epígrafe romanesca por excelência: "Em agosto de 1997 fiz mais uma ronda pela província do Namibe, sudoeste de Angola, onde desde 1972 mantenho um contato frequente com alguns pastores kuvale. Estava previsto acompanhar-me (...) um amigo meu, fixado em Londres e repórter da BBC. Acabei por fazer a viagem sem ele. Tardava e eu não podia adiar a partida. Admiti no entanto que talvez pudesse chegar ainda nos próximos dias, a tempo de alcançar-me. Fui-lhe por isso deixando cassetes com a gravação do que contava dizer-lhe pelo caminho". O livro -ensaio etnográfico, descrição das comunidades nômades do deserto- é a transcrição das fitas deixadas como pista para o amigo que nunca chegou.
Em "Os Papéis do Inglês", o autor repete um procedimento romanesco semelhante ("escrever a alguém"), que extrapola e estrutura simultaneamente a prosa como pretexto de relato dirigido, neste caso, a uma "destinatária que se insinua e instala no texto". Conta-lhe a história de um personagem conradiano, um caçador inglês que, depois de matar um companheiro de profissão grego às margens do rio Kwando, na fronteira com a atual Zâmbia, em 1923, e de se entregar às autoridades portuguesas, que não lhe dão ouvidos, volta ao acampamento e abate a tiro tudo o que vê pela frente, terminando por disparar a arma contra o próprio peito.
Ruy Duarte de Carvalho lê sobre o caso pela primeira vez no livro de crônicas de um capitão do Exército português, Henrique Galvão, caçador aficionado e figura de destaque do período colonial de Angola, cujo título é sintomático: "Em Terra de Pretos". É um relato sucinto ("O Branco Que Odiava as Brancas"), que apresenta os fatos sem se estender sobre as motivações do crime. É, portanto, pela ficção que o autor-antropólogo procura um caminho e uma resposta, criando a sua própria versão para narrá-la à "destinatária". Uma ficção hesitante que, informada pela antropologia, preza o princípio de que "mais que o achado vale sempre a busca".
Por esse mesmo princípio, o caminho só se dá a ver pelo acúmulo e pela sobreposição de histórias, nos interstícios e contiguidades. O que ocorre então é uma narrativa em permanente "suspeita perante si mesma", a questionar-se, interrompendo-se para se revelar, por um procedimento análogo ao relativismo antropológico: "E quem narra não há de ter, ele também, que dar-se a contar?".
Por uma série de coincidências, os papéis que o inglês teria deixado, com uma possível explicação dos fatos, foram herdados pelo avô já falecido de um dos atuais informantes do autor-antropólogo e vendidos a um homem branco que o antropólogo termina por suspeitar, pelas datas e circunstâncias, ser o seu próprio pai, também caçador e já falecido.
Toda a busca, que lembra a obsessão insaciável pelos supostos e inacessíveis "Papéis de Aspern", de Henry James, se faz pelo desdobramento auto-reflexivo de histórias dentro de histórias. É dessa procura impossível e interminável que nasce a ficção. E é como se Ruy Duarte de Carvalho se servisse de uma "estória angolana" para fazer também a sua teoria da literatura, de dentro de um país em crise permanente, onde "se consome e vive como se o mundo fosse acabar amanhã".


Os Papéis do Inglês
    
Autor: Ruy Duarte de Carvalho
Editora: Cotovia
Quanto: 2.300$00 escudos (188 págs.)
Onde encomendar: livraria Portugal (r. Genebra, 165, tel. 0/xx/11/3104-1748)







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