São Paulo, sábado, 06 de janeiro de 2001

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ARTIGO

Editor joga sol aos porões literários

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1961, passei pela primeira vez pelo augusto portal da Gallimard, então, como agora, a primeira, a mais prestigiosa, a mais literária de todas as grandes editoras do mundo.
Não seria preciso saber disso para se deixar impressionar pelo número 5 da rua Sebastien-Bottin, com sua dupla insígnia como um escudo que, a um só tempo, simbolizava, advertia e convidava: Gallimard - NRF - Nouvelle Revue Française.
Eu tinha 31 anos, e meu primeiro romance, "La Región Más Transparente", seria publicado pela editora Gallimard, com um prefácio de Miguel Angel Asturias. Por tudo isso, cheguei com certa hesitação à mesa da recepcionista e lhe dei meu nome.
- E quem é o senhor?, perguntou-me a formidável cérbera.
- Um romancista mexicano, respondi, com toda dignidade.
- Sans blague?, exclamou a recepcionista, o que, traduzido formalmente, significa "sério?", mas coloquialmente poderíamos entender como "é mesmo?".
Bem, eu não era o primeiro espécime exótico latino-americano a ser acolhido pela nobre casa Gallimard. Creio que essa distinção cabe a Ricardo Guiraldes, cujo "Don Segundo Sombra" -um romance de repercussão mundial- saiu pela NRF em 1932.
Mais tarde, graças à inteligência cordial -cordial, de coração- da magnífica e inesquecível Monique Lange, graças à percepção aguçada do proprietário Claude Gallimard e graças ao empenho do escritor Roger Caillois, que viveu em exílio na Argentina durante a Segunda Guerra, criou-se a coleção La Croix du Sud (Cruzeiro do Sul), entre cujas capas amarelas com letras verdes -como a bandeira brasileira- podia-se ler Martin Luis Guzmán, Jorge Luis Borges e Alejo Carpentier.
Mas foi graças a Julio Cortázar -cuja aparência de eterno menino e homem bondoso ocultava uma vontade férrea- que nós, latino-americanos, fomos retirados de nosso gueto verde e amarelo e entramos na coleção de capas brancas -Du Monde Entier, a coleção de literatura universal. Cortázar alegava que a ela pertencia, por direito, nossa coleção.
Este é apenas um pequeno capítulo -uma evocação latino-americana- de uma história prodigiosa do mundo editorial. Basta pensar: a casa Gallimard se origina em 1908 com uma idéia de André Gide -uma literatura isenta dos "ismos", uma literatura que se furta aos clássicos para matar a sede e oferecer um gosto do mundo. A revista se ampliou até virar editora, em 1911, e pelos 90 anos seguintes enriqueceu e consolidou sua posição por meio dos três Gallimard: o avô Gaston, o filho Claude e o neto Antoine.
O avô só vi de longe, almoçando pontualmente a cada dia no hotel Montalembert, da rue du Bac, ao lado da editora. Mas, com seu passo elegante, olhar discreto e vestimenta um pouco passada de moda, percebia-se uma inteligência que valia mais do que alguns erros -como rechaçar "O Caminho de Swann", de Proust, que classificou como "simples obra de entretenimento". Mas esses erros foram rapidamente reparados com a publicação de "Swann", em 1917, e o Prêmio Goncourt conquistado por "À Sombra das Raparigas em Flor", de 1919.
E esse pequeno erro é de qualquer forma superado pelos grandes sucessos de reunir Claudel e Valéry, Breton e Aragón, Malraux e Sartre e, no domínio estrangeiro, apresentar Faulkner e Hemingway, Joyce e Nabokov, Thomas Mann e Alfred Döblin.
Ao lado desse dinamismo e receptividade ao que havia de mais atual, a Gallimard deu início à série de clássicos franceses e estrangeiros mais prestigiada do mundo, La Pléyade, dirigida, até seu exílio em 1940, por Jacques Schiffrin e cuja lista vai da Bíblia a Borges. Creio que não haja no mundo volumes mais lindos, mais deliciosos ao tato. Abri-los é, como diria José Emilio Pacheco, abrir-se ao amor de uma mulher. Juro.
Os anos sombrios da guerra e da ocupação alemã põem à prova a capacidade da editora de resistir, fugir à censura e lançar novos autores que, por desconhecidos, não eram motivos de suspeita. Anos de confronto: Drieux la Rochelle controla a revista pró-alemã; Gaston Gallimard, os livros livres.
Isenta de toda a culpa pelos comitês de depuração da França libertada, em 1944, a família Gallimard voltou ao vôo -primeiro com Gaston e, a partir de 1961, com Claude, um homem de extraordinária seriedade e reserva, acompanhadas de extraordinária cordialidade e abertura ao mundo. Ele conduziu a Gallimard a tomar parte do Prêmio Formentor, que deu grande espaço internacional a Beckett e a Borges. E levou a literatura do Novo Mundo a um lugar de honra no catálogo da Gallimard: Octavio Paz e Mario Vargas Llosa, William Styron e Philip Roth. Deu-se conta, antes de todos, da importância da literatura centro-européia e trouxe Milan Kundera, Thomas Bernhard e Peter Handke à Gallimard. Acentuou o caráter europeu aberto e integrador da literatura: o português Fernando Pessoa, o búlgaro cosmopolita Elias Canetti e os suíços de língua alemã Durrenmatt e Frisch. Foi essa a extraordinária herança legada ao jovem editor.
Antoine Gallimard, a partir de 1988, trouxe desenvolvimento, modernização e saúde fiscal à quase centenária editora. Ampliou as atividades da Gallimard à literatura juvenil, aos livros de viagens, aos textos paradidáticos e ao audiovisual. Defendeu o preço único dos livros contra a concorrência desleal dos supermercados livreiros. Lutou pelas pequenas livrarias, indispensáveis ao bibliófilo que quer folhear, encontrar tesouros perdidos, dar sol às sombras literárias. Ele mesmo, desde jovem, fuçava nos porões da Gallimard, encontrando edições esgotadas indispensáveis, lançando a coleção O Imaginário, que resgatou dos subterrâneos obras de Faulkner e Rulfo, Rómulo Gallegos e Herman Broch.
Ampliou a coleção Folio, talvez a melhor e mais bela coleção de livros de bolso do mundo, que hoje conta com mais de 2.000 títulos a preços acessíveis, reforçando o convite à leitura do trabalho de uma editora cujos títulos mais vendidos não são Danielle Steel, John Grisham ou Tom Clancy, mas "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry, com 9 milhões de exemplares, "O Estrangeiro", de Camus, com 8 milhões, "A Peste", também de Camus, com 6 milhões, e, para completar a lista, "A Condição Humana", de Malraux, com 4 milhões de exemplares. Quem está falando do fim dos livros e do enterro de Gutemberg?
A condição humana: seu avô disse uma vez que amava os livros, as mulheres e o mar. Antoine, mais discreto, diz amar os livros e a amizade. Que inclui, acrescento, o amor e as mulheres. E inclui igualmente o mar. Antoine é um surfista de primeira ordem. "Por quê?", perguntei-lhe. "Porque gosto de conhecer meus limites", respondeu.
Os limites de Antoine Gallimard. A arte da memória. Recordar os escritores para que recordemos Gallimard. Felicidades, Antoine. Felicidades, Gallimard.


Tradução Paulo Migliacci




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