São Paulo, quinta-feira, 06 de janeiro de 2005

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ERUDITO

Renomada intérprete de Mozart e Strauss lança livro em que narra sua trajetória e a superação do medo do palco

Renée Fleming escreve biografia de sua voz

MARIE-AUDE ROUX
DO "MONDE"

Aos 45 anos, no auge da carreira, a cantora norte-americana Renée Fleming acaba de publicar um livro de memórias, "The Inner Voice" (A Voz Interior). Mais que a história de sua vida, a cantora traça uma biografia de sua voz.
Renomada intérprete do trabalho de Mozart e Strauss, se destaca igualmente nas óperas barrocas como as de Handel, um dos pontos altos de seu repertório, como prova a antologia de árias recentemente lançada pela gravadora Decca e seu recente trabalho no papel-título de "Rodelinda", em produção do Metropolitan Opera House, em Nova York.
 

Pergunta - O que a levou a escrever essa autobiografia?
Renée Fleming -
A idéia não partiu de mim, mas de meus agentes e da editora Viking. No começo achava que não teria o que dizer, não saberia como escrever, mas comecei a relembrar meus anos de estudo na Juilliard School, em Nova York, a avidez quase obsessiva com que buscava um livro que pudesse me orientar em meu trabalho. Eu devorava autobiografias de cantoras para descobrir formas de melhorar o meu canto. Escutava centenas de gravações de arquivo, assistia a inúmeros vídeos e tentava compreender o que as grandes cantoras faziam com seus corpos, com a boca, de que forma respiravam. Estudava a postura delas. Lia tudo que conseguia encontrar sobre técnica de canto, incluindo os aspectos psicológicos, que muitas vezes são causa de grande dificuldade.
Por todas essas razões, me convenci de que minha história talvez pudesse ajudar cantoras jovens. O que eu não previa era que o livro também serviria para ajudar a mim. A escrita agiu como uma espécie de terapia. Isso me permitiu encarar uma série de coisas e, finalmente, amadurecer.

Pergunta - Foi muito difícil adquirir os belos agudos pelos quais é conhecida hoje?
Fleming -
Com certeza existem predisposições -a voz natural, a forma do rosto; precisei trabalhar com enorme afinco. É difícil de explicar, mas uma nota é boa quando nós nos sentimos livres e relaxados ao emiti-la, quando a ressonância parece bem colocada e a sonoridade central é fácil de distinguir. Os agudos, em seu conjunto, são mais difíceis que as notas graves. Foi improvisando em noitadas de jazz, quando eu estudava em Potsdam, na antiga Alemanha Oriental, que tentei atingir, sem refletir, as notas mais agudas que já alcancei.

Pergunta - E a senhora teve também que superar um caso sério de medo do palco.
Fleming -
Eu sou uma pessoa privilegiada, mas nada que consegui foi fácil. Durante muito tempo, fui vítima de um medo de palco terrível, que me deixava em estado próximo à catatonia e me provocava náusea. Fazia parte da categoria dos "evanescentes". Durante muito tempo eu precisava, antes de entrar em cena, da presença de pessoas a quem eu pudesse comunicar meu pânico, a fim de conseguir escapar dele. Com o passar dos anos, foi minha irmã Rachelle que assumiu esse papel de portadora de minha angústia. A dança, o teatro, o jazz, me ajudaram a existir em cena, a estabelecer contato com o público. Eu era muito tímida.

Pergunta - Além dos problemas vocais, a senhora fala também do poder da música e da voz trabalhada em um mundo em que a ópera não é uma arte popular.
Fleming -
É verdade que sempre estou trabalhando, porque os cantores clássicos receberam apelos para as grandes noites de celebração ou comemoração. Alguns meses depois do 11 de Setembro, participei de uma cerimônia no local do ataque, em Nova York. Cantei "Amazing Grace" diante de 9.000 pessoas. Nas semanas anteriores, eu me preparara para não me deixar surpreender pela emoção. Mas, quando chegou o dia, tive de levantar os olhos para não ver os rostos. Tenho ainda a sensação de que passou pela minha voz a emoção coletiva de uma alma comum, em luto. Creio que, além da música, que nos enraíza a todos em solo comum, há uma autoridade inerente em uma voz "qualificada". Cantamos sem microfone, com o corpo todo, e transmitimos uma força natural que vem do mais profundo de nosso ser. Nesses momentos, creio que porto algo que é maior do que eu.

Pergunta - A senhora canta desde criança. Também compõe?
Fleming -
Foi escrevendo música que comecei a compreender interpretação, a saber onde estava. No colégio, eu escrevia poemas e canções. "Stargazer", minha primeira composição, se tornou sucesso na família e na localidade. No meu segundo ano de universidade, compus peças para piano e violão. Minha heroína era Joni Mitchell, que eu escutava sem parar. Foi praticando a composição, mesmo que de maneira modesta, que comecei a me interessar por toda espécie de música, especialmente a música contemporânea.


THE INNER VOICE. Biografia da soprano lírica. Autora: Renné Fleming. Editora: Viking. Quanto: US$ 14,97. Onde encontrar: www.amazon.com.
HANDEL. Disco. Artistas: Renée Fleming, Harry Bicket, Orchestra of the Age of Enlightenment e George Friedrich Handel. Lançamento: Decca. Quanto: US$ 13,49. Onde encontrar: www.amazon.com.


Tradução Paulo Migliacci


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