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ERUDITO
Renomada intérprete de Mozart e Strauss lança livro em que narra sua trajetória e a superação do medo do palco
Renée Fleming escreve biografia de sua voz
MARIE-AUDE ROUX
DO "MONDE"
Aos 45 anos, no auge da carreira, a cantora norte-americana Renée Fleming acaba de publicar
um livro de memórias, "The Inner Voice" (A Voz Interior). Mais
que a história de sua vida, a cantora traça uma biografia de sua voz.
Renomada intérprete do trabalho de Mozart e Strauss, se destaca
igualmente nas óperas barrocas
como as de Handel, um dos pontos altos de seu repertório, como
prova a antologia de árias recentemente lançada pela gravadora
Decca e seu recente trabalho no
papel-título de "Rodelinda", em
produção do Metropolitan Opera
House, em Nova York.
Pergunta - O que a levou a escrever essa autobiografia?
Renée Fleming - A idéia não partiu de mim, mas de meus agentes
e da editora Viking. No começo
achava que não teria o que dizer,
não saberia como escrever, mas
comecei a relembrar meus anos
de estudo na Juilliard School, em
Nova York, a avidez quase obsessiva com que buscava um livro
que pudesse me orientar em meu
trabalho. Eu devorava autobiografias de cantoras para descobrir
formas de melhorar o meu canto.
Escutava centenas de gravações
de arquivo, assistia a inúmeros vídeos e tentava compreender o que
as grandes cantoras faziam com
seus corpos, com a boca, de que
forma respiravam. Estudava a
postura delas. Lia tudo que conseguia encontrar sobre técnica de
canto, incluindo os aspectos psicológicos, que muitas vezes são
causa de grande dificuldade.
Por todas essas razões, me convenci de que minha história talvez
pudesse ajudar cantoras jovens. O
que eu não previa era que o livro
também serviria para ajudar a
mim. A escrita agiu como uma espécie de terapia. Isso me permitiu
encarar uma série de coisas e, finalmente, amadurecer.
Pergunta - Foi muito difícil adquirir os belos agudos pelos quais é
conhecida hoje?
Fleming - Com certeza existem
predisposições -a voz natural, a
forma do rosto; precisei trabalhar
com enorme afinco. É difícil de
explicar, mas uma nota é boa
quando nós nos sentimos livres e
relaxados ao emiti-la, quando a
ressonância parece bem colocada
e a sonoridade central é fácil de
distinguir. Os agudos, em seu
conjunto, são mais difíceis que as
notas graves. Foi improvisando
em noitadas de jazz, quando eu
estudava em Potsdam, na antiga
Alemanha Oriental, que tentei
atingir, sem refletir, as notas mais
agudas que já alcancei.
Pergunta - E a senhora teve também que superar um caso sério de
medo do palco.
Fleming - Eu sou uma pessoa
privilegiada, mas nada que consegui foi fácil. Durante muito tempo, fui vítima de um medo de palco terrível, que me deixava em estado próximo à catatonia e me
provocava náusea. Fazia parte da
categoria dos "evanescentes". Durante muito tempo eu precisava,
antes de entrar em cena, da presença de pessoas a quem eu pudesse comunicar meu pânico, a
fim de conseguir escapar dele.
Com o passar dos anos, foi minha
irmã Rachelle que assumiu esse
papel de portadora de minha angústia. A dança, o teatro, o jazz,
me ajudaram a existir em cena, a
estabelecer contato com o público. Eu era muito tímida.
Pergunta - Além dos problemas
vocais, a senhora fala também do
poder da música e da voz trabalhada em um mundo em que a ópera
não é uma arte popular.
Fleming - É verdade que sempre
estou trabalhando, porque os
cantores clássicos receberam apelos para as grandes noites de celebração ou comemoração. Alguns
meses depois do 11 de Setembro,
participei de uma cerimônia no
local do ataque, em Nova York.
Cantei "Amazing Grace" diante
de 9.000 pessoas. Nas semanas
anteriores, eu me preparara para
não me deixar surpreender pela
emoção. Mas, quando chegou o
dia, tive de levantar os olhos para
não ver os rostos. Tenho ainda a
sensação de que passou pela minha voz a emoção coletiva de uma
alma comum, em luto. Creio que,
além da música, que nos enraíza a
todos em solo comum, há uma
autoridade inerente em uma voz
"qualificada". Cantamos sem microfone, com o corpo todo, e
transmitimos uma força natural
que vem do mais profundo de
nosso ser. Nesses momentos,
creio que porto algo que é maior
do que eu.
Pergunta - A senhora canta desde
criança. Também compõe?
Fleming - Foi escrevendo música
que comecei a compreender interpretação, a saber onde estava.
No colégio, eu escrevia poemas e
canções. "Stargazer", minha primeira composição, se tornou sucesso na família e na localidade.
No meu segundo ano de universidade, compus peças para piano e
violão. Minha heroína era Joni
Mitchell, que eu escutava sem parar. Foi praticando a composição,
mesmo que de maneira modesta,
que comecei a me interessar por
toda espécie de música, especialmente a música contemporânea.
THE INNER VOICE. Biografia da soprano
lírica. Autora: Renné Fleming. Editora:
Viking. Quanto: US$ 14,97. Onde
encontrar: www.amazon.com.
HANDEL. Disco. Artistas: Renée Fleming,
Harry Bicket, Orchestra of the Age of
Enlightenment e George Friedrich
Handel. Lançamento: Decca. Quanto:
US$ 13,49. Onde encontrar:
www.amazon.com.
Tradução Paulo Migliacci
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