São Paulo, sexta-feira, 06 de janeiro de 2006

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CRÍTICA

Mendes compõe conflito imaginário

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um helicóptero passa, riscando o céu, tocando no alto-falante um trecho de "The End", dos Doors. Swoff (o ator Jake Gyllenhaal, em ótima atuação) olha para seu companheiro, Troy (Peter Sarsgaard, incansável), e grita para a aeronave, para o nada, algo como: "Essa música é da outra guerra!". E para o amigo, em desabafo: "Essa guerra é tão ruim que nem música própria tem...".
Ele se refere, é claro, à cena clássica do filme clássico "Apocalypse Now" (1979), de Francis Ford Coppola, em que o ensandecido tenente-coronel Bill Kilgore (Robert Duvall) comanda seu assalto de helicópteros a uma aldeia durante a Guerra do Vietnã (1957-1975) ao som da "Cavalgada das Valquírias", de Wagner, em tática que teria sido usada anteriormente pela Luftwaffe nazista.
A cena define "Soldado Anônimo", a geração dos soldados a que o filme se refere e a guerra de que trata, a do Golfo (1991), quando Bush 1º colocou os iraquianos invasores do Kuwait para correr e parou a poucos metros de derrubar Saddam (por inépcia ou sagacidade, dependendo da orientação política do interlocutor).
O terceiro longa do diretor britânico Sam Mendes, que fez carreira nos teatros, é brilhante por isso, por não presumir nada de antemão; prefere, em vez, seguir o livro e o roteiro de quem esteve lá. E ambos, o ex-combatente e roteirista William Broyles Jr. e o ex-marine e autor Anthony Swofford, estiveram lá e sabem do que estão falando -ou escrevendo.
Do ponto de vista do soldado norte-americano médio, chamado a lutar num conflito que não é seu e que não entende, numa guerra que consagrou a falácia da "guerra cirúrgica" e da "bomba inteligente", a Guerra do Golfo é mesmo "ruim", no sentido de que não oferece palco para heroísmo.
Especialmente para um soldado como Anthony Swofford, o personagem verídico Swoff do começo, que, com o amigo Troy, forma uma dupla de atiradores de elite. É da frustração dos dois -melhor não revelar o motivo- que nasce a reflexão do marine sobre esta guerra e todas as guerras. Da reflexão nascerá o best-seller, e do best-seller, o filme. Os três -guerra, livro, filme- são metafóricos, não existem sozinhos.
Os soldados em terra da Guerra do Golfo agiam conforme as referências a seu alcance, daí a citação provavelmente verídica que Swoff fez de "Apocalypse Now". Para ele, a Guerra do Vietnã não é a Guerra do Vietnã que durou quase duas décadas e matou entre 2 e 4 milhões de pessoas. Para ele e seus colegas, a guerra é o filme de Coppola, a guerra de mentira que tem até sua própria música, "The End", e cujos soldados de mentira também têm sua própria música, o trecho da ópera de Wagner.
Na guerra-livro-filme há outras referências, como a "Nascido para Matar" (1987) ou a "2001 - Uma Odisséia no Espaço" (1968), ambos de Stanley Kubrick, especialmente na cena em que Swoff senta-se numa roda de cadáveres carbonizados. Tanta citação faz pensar no que teria vindo antes na formação do "Homo americanus", os fatos ou a referência aos fatos? É disso que trata Anthony Swofford.
Sábio, Sam Mendes faz uma direção discreta, em que não pesa a mão nos atores, mais semelhante ao que faz com Tom Hanks em "Estrada para Perdição" (2002) do que com Kevin Spacey em "Beleza Americana" (1999). É como se, a cada filme, o diretor teatral fosse cedendo espaço ao de cinema. E que grande diretor de cinema ele está virando.


Soldado Anônimo
Jarhead
    
Produção: EUA, 2005
Direção: Sam Mendes
Com: Jake Gyllenhaal, Peter Sarsgaard, Jamie Foxx
Quando: a partir de hoje, nos cines HSBC Belas Artes, Villa Lobos e circuito


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